Não é incomum que o tempo, quando revogado, revele a dimensão farsesca da memória. Daniel Mantovani, laureado com a distinção máxima do Nobel, não regressa à sua cidade natal em busca de reconciliação ou nostalgia: sua volta é, antes de tudo, uma provocação metafísica. Em “O Cidadão Ilustre”, a viagem de retorno não obedece à lógica dos afetos, mas à sedução de um abismo íntimo — um chamado que não nasce da saudade, mas da necessidade de expor à luz o que restou depois da consagração. Gastón Duprat e Mariano Cohn desenham essa jornada com a precisão de um sismógrafo moral: cada tremor emocional é orquestrado para revelar o que há de mais dissonante entre um homem e seu passado. E o que inicialmente se insinua como homenagem torna-se um campo minado de ressentimentos acumulados, vaidades feridas e ficções transformadas em ofensas públicas.
Nada, no entanto, é gratuito ou artificial. O mal-estar que se instala progressivamente não resulta de alguma artimanha retórica, mas de um desconforto visceral, construído com minúcia psicológica. A comédia negra aqui não se contenta em provocar o riso ácido: ela dissolve as fronteiras entre o grotesco e o verossímil com uma sofisticação pouco usual. Não há exageros caricatos, nem efeitos fáceis. A tensão se adensa como um silêncio denso antes da explosão — e cada gesto, cada diálogo, cada cena aparentemente banal carrega a carga simbólica de uma implosão iminente. A cidade de Salas, com seus habitantes contraditórios e suas paisagens de melancolia rural, não é apenas cenário: ela é personagem e antagonista. O autor que a transformou em literatura se vê engolido por aquilo que julgava dominar — e a queima literal de suas páginas para acender uma fogueira no acostamento torna-se a metáfora mais eloquente da desvalorização da cultura em sua terra natal.
Entretanto, o que há de mais perturbador nesse itinerário é a maneira como ele reconfigura a figura do intelectual. Mantovani não é mártir nem herói, tampouco uma vítima das circunstâncias: ele é o produto de um sistema que premia o brilho exterior ao custo do esvaziamento interior. Ao declinar do pedestal onde fora alçado, descobre que toda consagração carrega a armadilha do pertencimento — ao mercado, à crítica, às expectativas ideológicas. O filme, ao retratar o exílio subjetivo de seu protagonista, tangencia com densidade as reflexões de Arthur Schopenhauer, para quem o querer é uma pulsão trágica e desagregadora. Mais que isso: evoca Roger Scruton e sua defesa intransigente da arte enquanto fim em si mesma, jamais redutível a instrumentos morais, políticos ou pedagógicos. A convergência entre esses pensadores não é incidental, mas articulada como camada subterrânea da crítica que atravessa o longa. Mantovani, como Scruton, repele a ideia de cultura como veículo de virtude coletiva — sua obra não quer ensinar, transformar ou edificar. Quer apenas existir como linguagem estética autônoma, mesmo que isso custe o repúdio de seus conterrâneos.
Se o roteiro entrega ao espectador momentos de humor ferino e situações que beiram o surreal, sua espinha dorsal é calcada na lógica implacável da tragédia: a ascensão que cobra seu preço em lucidez. Quando, ao final, Daniel converte sua experiência em ficção — publicando um novo romance inspirado em sua jornada ao inferno cotidiano de Salas —, o gesto não soa como catarse, mas como retaliação. A arte volta a ocupar seu lugar de potência destrutiva e reveladora. Ele não foi derrotado, mas tampouco venceu: apenas transmutou sua indignação em literatura. A cena da coletiva de imprensa que encerra o filme sintetiza esse ciclo com ironia calculada — os jornalistas o reverenciam como figura quase messiânica, alheios ao fato de que ali está alguém que queimou seus próprios princípios em nome de uma vingança estilizada. A lição não é de redenção, mas de lucidez crua: mesmo aqueles que dizem desprezar o jogo continuam jogando, contanto que possam escrever as regras no último capítulo.
★★★★★★★★★★