Há momentos em que a ficção científica deixa de ser apenas um exercício de imaginação especulativa para se converter numa lente distorcida — e reveladora — sobre o presente. “O Núcleo: Missão ao Centro da Terra” opera justamente nesse território instável, em que o absurdo narrativo e a verossimilhança emocional travam uma disputa silenciosa. O ponto de partida é de um nonsense quase pueril: o núcleo do planeta cessou seu giro, e a blindagem magnética que protege a Terra da fúria solar está prestes a se dissipar.
No entanto, sob a superfície inverossímil desse enredo escava-se uma angústia coletiva, quase arquetípica, sobre o colapso da ordem — geológica, social e moral. Os marcapassos falham, pombos enlouquecem, satélites despencam, e o mundo desaba como se estivesse pagando a conta atrasada de seus próprios avanços tecnológicos. O que deveria soar como hipérbole se transforma, paradoxalmente, num espelho torto do que o nosso tempo teme, mas não nomeia.
A missão para restaurar o equilíbrio da Terra é concebida com o fervor de uma ópera científica e a ingenuidade de uma matinê de domingo. Uma equipe improvável — geofísicos que parecem ter saído de um casting para sitcoms, engenheiros geniais confinados em depósitos subterrâneos e hackers que conversam com golfinhos — embarca rumo ao centro do planeta numa cápsula em forma de serpente, construída com um metal cuja existência se restringe ao universo do roteiro: o inobtêniom. A travessia, que se propõe científica, resvala deliberadamente no surreal.
Os passageiros caminham fora da nave sob pressão equivalente a 800 mil libras por polegada quadrada com trajes que sugerem mais veludo cotelê do que engenharia térmica de ponta. É aí que a ciência desiste da lógica e se alinha, com desfaçatez encantadora, à tradição do delírio controlado dos filmes-catástrofe. O mais fascinante, porém, é como esse exagero é sustentado não por coerência factual, mas por uma convicção estética que sabe exatamente o tipo de entretenimento que quer entregar.
As cidades, símbolos concentrados da civilização ocidental, não são meros cenários colaterais do caos — elas são os alvos preferenciais. A destruição da Ponte Golden Gate, o colapso do Coliseu, o pouso forçado do ônibus espacial em Los Angeles durante o horário de pico — cada uma dessas cenas é um aceno quase cínico à iconografia do desastre. Não se trata apenas de devastar estruturas físicas, mas de embaralhar o que essas imagens representam: estabilidade, progresso, dominação humana sobre a natureza. O que está em jogo não é apenas a sobrevivência da espécie, mas a fragilidade dos mitos que a sustentam. Há, nesse sentido, uma estratégia imagética deliberada: quanto mais simbólico for o monumento, mais eficaz será sua ruína como aviso silencioso de que até os impérios mais consolidados são feitos da mesma matéria que desmorona. O filme brinca com essa ideia com uma mistura rara de entusiasmo juvenil e cálculo cênico.
Em meio aos escombros e às placas tectônicas caprichosas, a narrativa encontra espaço para o humor involuntário — ou talvez engenhosamente disfarçado de despretensão. A explicação do fenômeno global com um desodorizador incendiando um pêssego diante de generais atônitos é uma aula de síntese visual e absurdo dramático. A frase “O núcleo da Terra parou de girar” é dita com a seriedade de um veredicto histórico, enquanto o espectador é convidado a suspender qualquer resquício de ceticismo. “O Núcleo” não busca convencer; seu pacto com o público é outro: quer seduzir pelo exagero, encantar pela improbabilidade, e divertir por saber que se leva a sério apenas o suficiente para não ser um deboche. Se há momentos em que a trama se arrasta ou os efeitos envelhecem mal, eles se dissolvem no charme atemporal de quem acredita no que diz — mesmo quando o que se diz é flagrantemente insustentável.
O que diferencia “O Núcleo” de outros filmes do gênero não é o enredo em si, mas sua capacidade de articular, sob a casca de um blockbuster apocalíptico, uma arquitetura narrativa que alterna melodrama, sátira e ficção científica com uma naturalidade desconcertante. Os personagens, ainda que moldados em arquétipos, revelam uma humanidade improvisada que confere densidade emocional à missão. As interações não são construídas para explorar conflitos morais profundos, mas para criar uma química funcional e, por vezes, surpreendentemente autêntica.
O vínculo que se estabelece entre os tripulantes, confinados sob toneladas de rocha incandescente, sugere que, mesmo diante do colapso iminente, é no contato entre indivíduos — e não na engenhosidade das máquinas — que reside a última esperança de sentido. Nesse aspecto, o filme toca em algo raro: a percepção de que a ficção científica pode ser um laboratório ético, ainda que construído sobre premissas científicas que desafiam qualquer manômetro de plausibilidade.
Se fosse julgado exclusivamente pelos padrões da física ou pela sobriedade dramática, “O Núcleo” ruiria na primeira análise. Mas há métrica mais justa para experiências narrativas que decidem, com plena consciência, transitar entre o nonsense e a emoção legítima? No fundo, o filme sabe exatamente onde pisa: no terreno minado das convenções genéricas, das fórmulas narrativas e da expectativa do espectador. E, ainda assim, pisa com ousadia, como quem prefere escorregar em lava digital a permanecer imóvel diante do previsível. Quando a nave perfura as camadas profundas do planeta com um laser sónico e um cientista, sem pestanejar, declara que a salvação depende de uma cadeia de explosões nucleares perfeitamente calibradas, não estamos diante de um erro de roteiro — estamos, na verdade, diante de uma declaração de princípios: a de que imaginar o impossível pode, às vezes, ser mais revelador do que explicar o provável.
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