O filme que todo mundo deveria assistir ao menos uma vez na vida — está no Prime Video Divulgação / Bleecker Street

O filme que todo mundo deveria assistir ao menos uma vez na vida — está no Prime Video

Uma família avessa às convenções sociais, instalada na floresta como resistência viva à lógica do consumo, nos obriga a encarar a utopia com olhos menos ingênuos e mais desconfiados. “Capitão Fantástico”, de Matt Ross, investiga os limites entre idealismo e responsabilidade, encenando um experimento pedagógico radical cuja premissa romântica é gradualmente corroída pelas contradições internas que tenta reprimir. Não se trata de mais uma ode simplista ao retorno à natureza, mas de um confronto direto com os riscos de uma coerência cega. O filme atravessa as florestas físicas e morais de uma proposta de vida que, por mais bem-intencionada, é tão vulnerável quanto qualquer sistema que se propõe a contestar.

Ben, o patriarca interpretado com intensidade contida por Viggo Mortensen, ergue uma trincheira contra o que vê como o colapso ético do mundo moderno. Em seu reduto selvagem, seus filhos crescem munidos de espadas e teorias revolucionárias, consumindo Chomsky como outros consumiriam cereal matinal. Mas o idílio desaba quando a notícia do suicídio da mãe chega sem anestesia, revelando uma fratura que não pode mais ser ignorada: mesmo as ideologias mais puras colapsam sob o peso do sofrimento humano. Quando os avós maternos proíbem sua presença no funeral, Ben abandona qualquer trégua com a civilização e parte com seus filhos em uma travessia que se transforma numa autópsia emocional de seus próprios dogmas.

A viagem não é apenas geográfica — é a desconstrução do próprio Ben enquanto figura de autoridade. Paradoxalmente, ele que desdenha toda forma de poder vertical acaba impondo aos filhos a rigidez de suas convicções. A educação espartana que lhes oferece entra em curto-circuito com o mundo ao redor, e, ao serem expostos ao cotidiano “normal”, as crianças passam a desejar aquilo que lhes foi negado por princípio. O McDonald’s, a universidade, a vida urbana — todos os símbolos antes descartados retornam como desejo legítimo, como se o interdito tivesse sido o verdadeiro propulsor da curiosidade. Ben se vê diante do impasse que muitos pais enfrentam: o de constatar que ensinar a pensar é, inevitavelmente, abrir mão do controle sobre o pensamento que virá.

A força do filme reside em desnudar essa falência de todos os modelos — tanto o capitalista quanto o anticapitalista — como caminhos plenos de sentido. O que se revela é um campo minado onde qualquer tentativa de coerência totalizante inevitavelmente falha diante da complexidade dos afetos, das dores e da imprevisibilidade do crescimento humano. A mulher que abandonou a cidade por uma vida “mais verdadeira” não encontrou nessa escolha a redenção esperada. Sua ausência grita durante todo o percurso do ônibus em direção ao velório, como um lembrete de que pureza ideológica não basta para suportar o peso da existência.

“Capitão Fantástico” não faz concessões a ideais redentores. Nem idealiza o pai rebelde, nem demoniza o mundo que ele rejeita. Ao contrário: constrói uma ambiguidade poderosa ao mostrar que toda educação, mesmo a mais consciente, precisa dialogar com o mundo exterior para não se tornar tirânica. E que proteger filhos da sociedade pode ser, sem querer, uma forma de cegá-los para a vida. O filme esculpe, com rara sensibilidade, a figura do pai que descobre que ensinar é também desaprender, que formar alguém implica aceitar que esse outro escolherá, com liberdade, os caminhos que podem contradizer nossas verdades mais íntimas.

No fundo, a obra subverte a fantasia do pai-herói e do filho-marujo. Ninguém aqui sai ileso. Todos precisam rever rotas e abandonar mitos. E talvez seja esse o gesto mais revolucionário de todos: a coragem de permitir que o amor sobreviva mesmo quando o ideal fracassa. Não como redenção, mas como insistência. Porque educar, no fim, é um ato de amor com prazo de validade — e a beleza do gesto está justamente no momento em que se aceita que os filhos partam para construírem, sem tutela, seus próprios mapas de mundo.

Filme: Capitão Fantástico
Diretor: Matt Ross
Ano: 2016
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★