No vórtice mais sombrio da Segunda Guerra Mundial, onde o Atlântico Norte assumia a função de uma linha de costura estratégica entre continentes em ruínas, a guerra naval deixava de ser pano de fundo e ganhava protagonismo silencioso. “Greyhound: Na Mira do Inimigo”, dirigido por Aaron Schneider e roteirizado por Tom Hanks — que também protagoniza o filme —, transforma essa paisagem marítima em um espaço claustrofóbico, onde a ameaça não se insinua por explosões espetaculares, mas pelo silêncio que precede o impacto, pelos cálculos obsessivos e pelo olhar inabalável de um comandante que carrega o peso de cada alma a bordo.
O filme parte de uma premissa objetiva: acompanhar a travessia de um comboio aliado formado por 37 embarcações através do chamado “Poço Negro” — uma zona letal do Atlântico onde a ausência de cobertura aérea tornava os navios presas fáceis para submarinos alemães. Essa missão de escolta, liderada pelo capitão Krause, encarnado por um Hanks em estado de contenção absoluta, não é apenas uma manobra tática. É, acima de tudo, uma metáfora sobre o isolamento do comando e sobre a precisão como única forma de sobrevivência em tempos de caos.
O que diferencia “Greyhound” de outros filmes ambientados em cenários de guerra é seu compromisso quase ascético com o realismo técnico. A tensão que move a narrativa não depende de grandes artifícios dramáticos ou de personagens forjados para agradar o espectador, mas de uma coreografia implacável entre homens, instrumentos e decisões tomadas em frações de segundo. O ambiente é fechado, quase asfixiante; os corredores do navio comprimem a ação em um ritmo frenético e preciso. Cada comando repetido, cada variação no sonar, cada batida no radar não são apenas gestos técnicos, mas elementos de uma liturgia onde qualquer hesitação pode ser fatal.
Essa fidelidade aos procedimentos da guerra submarina, em vez de distanciar, aproxima o espectador de uma realidade onde o heroísmo é implícito, silencioso e marcado pela exaustão. É nesse detalhe que o filme encontra sua potência dramática. “Greyhound” não busca construir empatia através de biografias aprofundadas ou subtramas emocionais — aliás, deliberadamente evita essas armadilhas —, mas sim por meio de uma imersão sensorial e objetiva em uma lógica de guerra que se sustenta na disciplina e no cálculo frio.
A ausência de arcos narrativos paralelos pode parecer, à primeira vista, uma limitação, mas se revela uma escolha coerente com o espírito do filme. A guerra ali não oferece espaço para distrações. O espectador, assim como a tripulação, é mantido em estado de vigília constante. Essa rigidez de estrutura, quase espartana, é compensada por uma cadência narrativa precisa e por uma mise-en-scène que entende a geografia do medo: a vastidão do oceano contrasta com o enclausuramento dos conveses, criando uma tensão visual entre aquilo que é invisível e aquilo que é inevitável.
Baseado na obra “The Good Shepherd”, de C. S. Forester, o roteiro assume uma perspectiva que recusa o sentimentalismo. Tom Hanks constrói seu personagem com economia e firmeza, como se cada gesto fosse calibrado para preservar a funcionalidade da máquina de guerra que comanda. Sua atuação evita os códigos tradicionais do líder carismático ou do soldado atormentado — ele é, antes de tudo, um operador de responsabilidade, alguém que conhece o peso das vidas que dependem de suas ordens. A guerra, nesse contexto, não se revela em explosões, mas no desgaste emocional de manter a sanidade diante da repetição e da vigilância.
O som desempenha um papel fundamental nesse projeto de tensão: a trilha sonora de Blake Neely é econômica, mas incisiva, reforçando o ritmo mecânico da guerra naval sem jamais sobrepor-se aos ruídos reais dos navios. Já a direção de Schneider se mantém quase invisível, guiando a câmera com sobriedade, sem efeitos desnecessários. Há momentos em que os efeitos visuais denunciam sua artificialidade, sobretudo nas cenas noturnas ou nas recriações digitais de embarcações, mas esses tropeços técnicos são compensados por uma ambientação física robusta — fruto das filmagens no USS Kidd e em embarcações reais canadenses. Esse embasamento concreto garante uma sensação de peso e desgaste que nenhum CGI seria capaz de simular plenamente.
Com apenas 91 minutos de duração, o filme parece operar no limite do tempo — comprimindo ao máximo sua narrativa para não dispersar o pulso constante da ameaça. Essa brevidade, longe de parecer um defeito, é uma estratégia: o filme sabe que sua força está no acúmulo de tensão e na persistência do risco, não na dilatação de sua estrutura. Há quem prefira obras mais extensas e analíticas, como “Das Boot”, que exploram a guerra submarina sob outras camadas, mas “Greyhound” se propõe a outra coisa: ser um soco preciso, direto e ininterrupto.
Em seu cerne, o filme transcende o gênero bélico e se configura como um tratado sobre comando, disciplina e o custo psicológico de liderar homens sob a sombra constante da morte. Ao recortar um trecho específico da batalha do Atlântico — quando as perdas aliadas eram catastróficas e os submarinos alemães operavam como matilhas invisíveis —, “Greyhound” reverencia não apenas os navios que desapareceram, mas os sujeitos que permaneceram em seus postos enquanto o mundo desabava ao redor. Os números desse confronto falam por si: milhares de embarcações afundadas, milhões de toneladas perdidas e dezenas de milhares de mortos — um holocausto líquido que o filme transforma em tensão viva.
Não se trata de um épico, nem de um ensaio sobre heroísmo — mas de um exercício rigoroso de contenção. A força do longa reside justamente na escolha de reduzir a guerra a seus elementos mais essenciais: comando, reação e resistência. E ao fazer isso, entrega um dos retratos mais sóbrios e eficientes sobre o peso de decidir quando todos os outros aguardam ordens.
★★★★★★★★★★