Bizarro e grotesco: terror com Sebastian Stan e Daisy Edgar-Jones é perfeito para fechar o fim de semana, no Disney+ Divulgação / Searchlight Pictures

Bizarro e grotesco: terror com Sebastian Stan e Daisy Edgar-Jones é perfeito para fechar o fim de semana, no Disney+

Há filmes que se anunciam com estrondo e outros que preparam terreno em silêncio, esperando o momento certo para desmontar as expectativas que ajudaram a construir. “Fresh”, longa de estreia de Mimi Cave, escolhe este último caminho. Por quase quarenta minutos, sustenta a ilusão de que estamos diante de mais uma narrativa sobre o desgaste das relações afetivas no século 21, temperada com ironia leve e ambientada num cotidiano que sugere banalidade. O encontro entre Noa e Steve em um supermercado é tão inofensivo quanto familiar, exatamente o tipo de situação que parece ter saído de uma prateleira de comédias românticas. O que o filme está realmente fazendo, no entanto, é preparar uma armadilha — não apenas para sua protagonista, mas para o próprio espectador, que se vê cúmplice de um jogo desconcertante de expectativas.

O sinal definitivo de que algo está fora de lugar surge quando, após trinta e cinco minutos de projeção, os créditos de abertura finalmente aparecem. Não se trata de uma escolha estética trivial: é um gesto narrativo que desloca a trama para um terreno completamente distinto daquele em que parecia estar pisando. O filme abandona o verniz inofensivo da comédia romântica para revelar uma camada de horror que jamais seria permitida num cenário de encontros fofos e diálogos bem-humorados. Mas a transição não ocorre como uma ruptura brusca: ela se dá como um desdobramento lógico de uma realidade mais sinistra que vinha se insinuando desde o início — ainda que sutilmente. Mimi Cave não apenas vira a chave do gênero; ela contamina a lógica do romance com o vírus da suspeita, do medo e da violência simbólica.

Ao longo do segundo ato, “Fresh” se revela como uma crítica contundente aos discursos de controle disfarçados de afeto. O que parecia ser uma história sobre a busca por conexões verdadeiras torna-se uma dissecação do consumo do outro — literal e metafórico. O corpo feminino, aqui, é reduzido a mercadoria gourmet, alimentando uma elite que devora com requinte o que não consegue dominar com afeto. O horror corporal, tão presente na tradição do gênero, encontra novo sentido nesse contexto: é a expressão extrema de uma lógica de objetificação levada às últimas consequências. O canibalismo que estrutura o arco narrativo não é apenas grotesco; ele é uma metáfora brutal da dinâmica de gênero e da instrumentalização dos desejos femininos.

O êxito da proposta depende, em larga medida, da atuação precisa de Daisy Edgar-Jones, que dá à sua personagem uma resistência que escapa aos modelos usuais de heroísmo feminino. Sua Noa não é uma vítima idealizada nem uma caricatura de força: é alguém que compreende, a duras penas, que sobreviver exige negociar com o inimigo, enganá-lo com sua própria lógica. Já Sebastian Stan constrói um antagonista inquietante, cuja aparente civilidade é constantemente corroída por impulsos predatórios. O carisma que ele exala serve de disfarce para uma perversão cuidadosamente cultivada. A ameaça nunca se dá em gritos ou explosões de fúria, mas na tranquilidade perturbadora de quem acredita estar oferecendo uma experiência de luxo, mesmo quando o que entrega é dor. O horror, aqui, tem o rosto de quem sabe sorrir enquanto destrói.

Há ainda um terceiro ponto de apoio dramático — a personagem de Jojo T. Gibbs — que traz à superfície uma tentativa de desvelamento e justiça. Embora sua presença não encontre desenvolvimento à altura do potencial sugerido, funciona como contraponto moral e como fio condutor da tensão externa à prisão onde Noa se encontra. Sua persistência revela que a brutalidade encenada ali não é um evento isolado, mas parte de um sistema que se mantém justamente porque passa despercebido.

É verdade que o filme escorrega em alguns momentos. Existem personagens que transitam pela história sem função precisa, situações que poderiam ser resolvidas com mais concisão e lacunas que insinuam mais do que entregam. Ainda assim, essas imperfeições não diluem a potência do conjunto. Ao contrário, indicam uma obra (no sentido de construção autoral) que assume riscos narrativos e estéticos. A diretora, mesmo em seu primeiro longa, demonstra um controle narrativo incomum, capaz de orquestrar tensão, crítica e estilo com impressionante equilíbrio. O roteiro de Lauryn Kahn, por sua vez, demonstra maturidade ao articular os códigos do horror a questões de gênero sem escorregar no panfleto ou na didática fácil.

“Fresh” se recusa a ser domesticado pelas expectativas de gênero — seja o cinematográfico, seja o social. Sua força está na colisão entre o familiar e o monstruoso, no modo como uma história de amor se transmuta em uma experiência de horror íntimo. O filme não pede aceitação nem propõe conforto; ele prefere o desconforto da ambiguidade. Talvez sua maior conquista esteja justamente aí: em escancarar que o verdadeiro terror não está em rituais macabros ou em criaturas sobrenaturais, mas na banalização de práticas violentas revestidas de charme e sedução. A ameaça não vem da floresta ou do porão — ela está no sorriso cortês, no jantar romântico, no elogio casual. O que Mimi Cave realiza é mais do que uma estreia promissora: é um gesto provocativo que confronta o espectador com seus próprios hábitos de consumo — afetivo, social, simbólico.

Filme: Fresh
Diretor: Mimi Cave
Ano: 2023
Gênero: horror/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★