Quem observa com desdém as roupagens berrantes e os corredores luminosos de um colégio em Beverly Hills talvez não desconfie que por trás das perucas, das minissaias e dos diálogos supostamente vazios se esconde uma velha conhecida da literatura inglesa. “As Patricinhas de Beverly Hills” parece, à primeira vista, um pastiche juvenil perdido na cartilha da cultura pop noventista. No entanto, a sua espinha dorsal repousa sobre uma figura literária que, dois séculos antes, desfiava as hipocrisias sociais com luvas de cetim e sarcasmo afiado: Jane Austen. Mais precisamente, a protagonista de “Emma”, romance de 1815, que Hollywood transplantou para um universo onde os bailes viraram festas escolares e os casamentos, reviravoltas românticas teen.
Há algo de perversamente engenhoso na forma como Amy Heckerling adapta o que Austen havia concebido como um retrato ágil e cáustico da elite britânica ociosa. Transformar Emma Woodhouse em Cher Horowitz não é apenas um exercício de troca de cenários, mas uma intervenção descarada nas regras do jogo narrativo. Embora se distancie da precisão estética e da sutileza linguística de Austen, Heckerling compreende que, para sobreviver à frivolidade do presente, a crítica social deve se disfarçar de frivolidade. A ironia deixa de ser um recurso e torna-se estratégia de sobrevivência — uma transgressão por trás do batom.
A saúde combalida de Jane Austen na época em que escreveu “Emma” talvez explique sua urgência em capturar, com desfaçatez e lucidez, a condição feminina encurralada entre privilégios aparentes e imposições veladas. O espírito combativo da autora se infiltra, ainda que diluído, em Cher. Rica, mimada, afetada e cega às próprias limitações, a jovem californiana acredita que tem o mundo a seus pés — o que inclui não só o armário digitalizado, mas também o destino sentimental alheio. Ao embarcar em sua missão de casamenteira, não percebe que é ela própria o objeto de reformulação. Austen já previa: o narcisismo da elite é um palco onde as vaidades encenam sua própria falência.
Na versão californiana, a aristocracia se traduz em advogados bilionários, celulares tijolões e passarelas improvisadas nos corredores do colégio. Dan Hedaya, como o pai superprotetor de Cher, é o guardião de um mundo em que a ingenuidade da filha não representa inocência, mas sim a apatia sofisticada de uma bolha social impermeável. Josh, o meio-irmão vivaz e ético interpretado por Paul Rudd, funciona como uma espécie de espelho moral — não tanto para confrontar Cher, mas para revelar a ela que nem tudo pode ser corrigido com boa intenção, charme e um vestidinho justo.
É nesse contexto que Dionne entra em cena, não como coadjuvante decorativa, mas como a encarnação de uma dualidade. A sua semelhança com Cher é deliberada, mas o temperamento cortante e o olhar menos ingênuo denunciam as falhas na estrutura artificial que cerca essas adolescentes. Stacey Dash e Alicia Silverstone, ao interpretarem essa dupla, ressuscitam a vitalidade anárquica que definia certos produtos culturais das décadas de 1980 e 1990 — produções que se permitiam ser contraditórias, indisciplinadas e deliciosamente inadequadas sem a tutela de uma moral externa.
A engrenagem narrativa se move com a leveza de quem finge não ter compromisso algum, mas logo revela seu propósito: transformar Cher de manipuladora involuntária em aprendiz do afeto genuíno. A estratégia de promover o romance entre dois professores, ferramenta cômica e simbólica do roteiro, não apenas reforça a ilusão de controle da protagonista, mas prenuncia sua derrocada parcial. Ao brincar de cupido, ela acredita estar acima do enredo — até descobrir que o enredo já a envolveu por completo. É nesse momento que Heckerling abandona a zombaria para abraçar uma ternura discreta, quase acidental.
Com a entrada da novata Tai, vivida por Brittany Murphy, o filme insinua que nem mesmo as caricaturas são imunes à metamorfose. O clichê do makeover, que poderia sepultar qualquer possibilidade de complexidade, ganha um inesperado frescor graças à química entre Silverstone e Murphy. Em vez de um teatro raso de popularidade, a amizade entre as duas aponta para um desejo, ainda que inconsciente, de empatia num universo regido por aparências. Se Austen via Emma como uma heroína que precisava falhar para compreender o amor, Heckerling concede a Cher o mesmo direito — o de se enganar para depois se reinventar.
Numa era saturada por discursos moralizantes e maniqueísmos bem-intencionados, há algo libertador em um filme que reivindica o direito de ser fútil e agudo ao mesmo tempo. “As Patricinhas de Beverly Hills” não pretende rivalizar com Austen em profundidade literária — seria tolice esperar isso. Mas talvez seu maior trunfo esteja justamente na capacidade de fazer com que o pensamento da autora reverbere onde menos se espera: numa comédia cor-de-rosa que, ao rir de si mesma, acaba zombando de todos nós. E, ironicamente, é aí que reside sua inteligência.
★★★★★★★★★★