Quase 30 anos após seu lançamento, filme com Pierce Brosnan é um dos mais assistidos da atualidade no mundo, pela Netflix Divulgação / Miramax

Quase 30 anos após seu lançamento, filme com Pierce Brosnan é um dos mais assistidos da atualidade no mundo, pela Netflix

Poucas adaptações são tão injustamente negligenciadas quanto “Robinson Crusoé”, estrelado por Pierce Brosnan. Lançado em um momento em que o prestígio das grandes epopeias literárias adaptadas já começava a se diluir no formato televisivo, o longa poderia ter sido mais um exercício previsível de fidelidade ao cânone. Mas não é. Sua força está justamente no desvio: ao rejeitar o dogma da transposição literal, o filme abraça o risco de propor um novo significado para um enredo saturado de interpretações coloniais. Ele não revisita Defoe; ele o interroga.

A insistência em medir o valor de uma adaptação pelo grau de obediência ao texto de origem revela uma confusão conceitual que insiste em tratar o cinema como extensão ilustrada da literatura. A linguagem audiovisual, no entanto, opera por tensão, ritmo, subtexto — e é nessa tensão que o filme de Rod Hardy e George Miller se ancora. Ao reinterpretar a relação entre Robinson e Sexta-Feira, a narrativa deixa de ser um relato unidimensional de dominação para se tornar um espaço de confronto simbólico entre visões de mundo. A ilha deixa de ser cenário de conquista para se tornar território de disputas morais e espirituais.

O longa opta por desmantelar a hierarquia racial implícita no romance original, substituindo a obediência forçada por um embate real entre sujeitos com história, fé e dor. O Sexta-Feira vivido por William Takaku não é um símbolo exótico a ser civilizado, mas um homem cuja crença e memória resistem à imposição de valores estrangeiros. A oposição entre o Deus cristão e o deus crocodilo não é mera alegoria religiosa — é uma fissura ontológica que atravessa toda a narrativa, dando espessura ao conflito e empurrando Crusoé para um exame de si que não existia no texto de Defoe. A conversão aqui não é do outro — é de si mesmo.

Nesse processo, a amizade entre os dois não é um ponto de partida, mas uma construção árdua, cheia de recuos e rupturas. A linguagem do filme evita idealizações fáceis. Há atritos, mal-entendidos, violências silenciosas e desconfianças que não se dissipam com um gesto nobre ou uma epifania repentina. A convivência se impõe não como redenção, mas como necessidade. E é dessa necessidade que nasce um vínculo que desafia o olhar colonizador. A ilha, nesse contexto, funciona como espelho de um Ocidente fragmentado, que exporta seus conflitos enquanto tenta disfarçar suas ruínas internas com discursos civilizatórios.

A ambientação — desde a natureza áspera da ilha até o rigor da cenografia — sustenta esse olhar crítico. Nada ali remete à utopia tropical que tantas vezes acompanha esse tipo de narrativa. O isolamento, embora geográfico, é sobretudo existencial. Crusoé, interpretado com surpreendente nuance por Brosnan, carrega em sua performance não apenas o peso da culpa e da arrogância, mas também a inquietação de quem, pela primeira vez, é forçado a escutar. O sotaque escocês cuidadosamente mantido não é só um recurso de autenticidade; ele reforça a raiz cultural de um homem que representa um império em colapso, mesmo sem saber.

A força simbólica do filme se condensa na cena final, em que a luta entre os dois — reminiscente do duelo que exilou Crusoé — já não é mais entre adversários, mas entre homens transformados por uma experiência irreversível. O gesto não é de reconciliação fácil, mas de reconhecimento mútuo, algo que o romance original jamais cogitou. A violência retorna, mas sob outra chave: não como repetição do domínio, mas como memória inapagável do conflito que estrutura toda relação humana marcada pela desigualdade.

Ao contrário do que supõem os puristas da fidelidade literária, “Robinson Crusoé” não pretende “corrigir” Defoe — pretende expor suas ausências. Seu gesto não é o da supressão, mas o da revelação: o que o texto não disse, o filme insinua; o que o romance omitiu, a câmera enfatiza. Nesse sentido, trata-se de uma reinterpretação radicalmente ética, que desloca o centro da narrativa e oferece espaço ao que antes era marginal.

Ignorado por premiações e relegado à categoria de adaptação menor, o filme permanece, paradoxalmente, como um dos raros exemplos em que o cinema ousa intervir criticamente em seu material de origem. Ele não reverencia Defoe — ele o contesta, e é justamente nesse gesto de insubordinação que reside sua força. Em tempos de narrativas cada vez mais acomodadas à ideia de representação “fiel”, esta versão de “Robinson Crusoé” propõe uma fidelidade mais interessante: a do espírito crítico.

Talvez o grande trunfo do filme seja devolver a Sexta-Feira aquilo que a literatura lhe negou: não apenas a voz, mas o direito de ser protagonista de sua própria história. E ao fazer isso, redefine a própria ilha — não mais como símbolo do isolamento, mas como território de escuta, desacordo e, quem sabe, possibilidade. Não é uma adaptação que pretende agradar; é uma leitura que nos obriga a repensar o que aceitamos como verdade.

Filme: Robinson Crusoe
Diretor: Rod Hardy e George Miller
Ano: 1997
Gênero: Aventura/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★