Não ganhou o Oscar esperado em 2025, mas foi eleito o melhor filme do ano — e já está sob demanda no Prime Video Divulgação / Focus Features

Não ganhou o Oscar esperado em 2025, mas foi eleito o melhor filme do ano — e já está sob demanda no Prime Video

Numa era em que a retórica da fé frequentemente se confunde com jogos de influência e disputas políticas, “Conclave”, dirigido por Edward Berger, lança o espectador num ambiente onde o sagrado não anula o cálculo estratégico, mas o disfarça com solenidade. A morte de um papa, evento já por si ritualizado até a exaustão, serve apenas como ponto de ignição para uma sucessão que não respeita o luto, mas o utiliza como cenário para uma coreografia de poder em trajes litúrgicos. Sob o véu da tradição, o filme reconstrói um universo que combina a opulência barroca com a crueza dos bastidores políticos, tensionando cada cena com a suspeita de que a santidade institucionalizada talvez não passe de uma fachada cuidadosamente montada. Berger conduz a narrativa com precisão cirúrgica, reforçando a ideia de que, entre afrescos e orações murmuradas, a fé é apenas mais um elemento manipulável no tabuleiro de interesses e ambições.

Essa camada de ambiguidade moral é encarnada por Ralph Fiennes, cuja composição do cardeal Lawrence extrapola o desempenho técnico para alcançar uma dimensão quase filosófica. Com mínimos gestos e silêncios cuidadosamente modulados, ele transforma a introspecção em elo dramático, não por ser personagem central, mas por representar o último reduto de conflito ético num universo que opera por conveniências disfarçadas de devoção. A câmera de Berger raramente o deixa escapar de composições que reforçam seu isolamento simbólico: a leve inclinação para baixo, os cortes que enfatizam sua expressão contida, tudo colabora para instaurar um retrato de um homem cercado por supostos iguais, mas cada vez mais apartado pelo peso da consciência. A tensão interna que o move não nasce da dúvida sobre qual cardeal seria mais digno, mas da constatação de que a dignidade talvez tenha sido a primeira vítima do conclave que ele próprio coordena.

No interior da Capela Sistina — meticulosamente reconstruída em um set que rivaliza com a original em exuberância cenográfica — o espaço sagrado transforma-se num laboratório de pressão psicológica. Lá dentro, cardeais de diferentes regiões são isolados, monitorados e privados de qualquer contato externo. O voto é secreto, mas os movimentos são visíveis, e o poder se revela não na escolha declarada, mas nas hesitações, alianças temporárias e gestos ensaiados. A direção de fotografia de Stéphane Fontaine intensifica esse jogo ao utilizar contrastes marcantes entre luz natural e sombras profundas, como se cada figura estivesse simultaneamente iluminada por sua suposta pureza e obscurecida por intenções escusas. As pausas nos diálogos ganham um peso tão expressivo quanto as falas, e até o som dos passos ecoa com significado, como se a arquitetura conspirasse com os personagens na manutenção do suspense.

Esse ambiente hermético é invadido, no entanto, por personagens que rompem com a previsibilidade. Carlos Diehz, em sua estreia no cinema, desafia a lógica hierárquica com uma presença que cresce à medida que o roteiro se complica. Sua performance como o cardeal Benítez não apenas imprime humanidade ao drama, mas carrega o espectador para o desfecho com uma inquietação quase insuportável. O mesmo se pode dizer de Isabella Rossellini, cuja irmã Agnes injeta um tipo de ironia rarefeita que corrói a solenidade de forma calculada. Em outro ponto do espectro, Sergio Castellitto, no papel do purista cardeal Tedesco, encarna a severidade como performance ideológica, e seu uso cínico de um vape em plena assembleia evoca mais blasfêmia simbólica do que qualquer discurso herético. A presença desses personagens não dispersa a tensão — ela a densifica, obrigando o espectador a repensar constantemente suas expectativas.

Ao adaptar o romance de Robert Harris com a colaboração do roteirista Peter Straughan, Berger não se limita a retratar o funcionamento interno de uma das instituições mais secretas do planeta. Ele constrói uma alegoria que extrapola os muros do Vaticano e ecoa nos corredores de qualquer estrutura de poder que se utilize da moral como ferramenta de manipulação. “Conclave” não apenas explicita os ritos, mas questiona os significados ocultos por trás deles, expondo o paradoxo entre a pureza teórica da doutrina e os desvios muito humanos de seus intérpretes. O espectador, longe de adotar a posição confortável de juiz, é colocado numa encruzilhada ética: o que acontece quando os homens que deveriam representar o absoluto são tão falíveis quanto os que tentam salvar?

A força do filme não reside em grandes revelações ou reviravoltas espetaculares, embora elas existam, mas na constância com que ele desestabiliza certezas. Cada cena parece construir um degrau para algo que, quando enfim se revela, não oferece alívio, mas outra camada de complexidade. A fumaça branca, ao final, não simboliza apenas a eleição de um novo líder espiritual, mas a névoa que continua a encobrir os reais mecanismos por trás da santidade institucionalizada. “Conclave” vem, assim, como um convite à desconfiança metódica, não para desacreditar a fé, mas para restituí-la ao domínio da escolha consciente — justamente onde ela pode respirar, ainda que em meio ao mármore e ao incenso.

Filme: Conclave
Diretor: Edward Berger
Ano: 2024
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★