O filme de ação que foi visto 13 milhões de vezes em apenas 24 horas — e entrou para o Top 10 da Netflix no dia da estreia Divulgação / Sony Pictures

O filme de ação que foi visto 13 milhões de vezes em apenas 24 horas — e entrou para o Top 10 da Netflix no dia da estreia

Há algo de profundamente inquietante na forma como certos filmes evitam o fracasso total por um triz — não por mérito acidental, mas porque intuem e exploram, com precisão calculada, os mecanismos que sustentam sua própria obsolescência. “Bloodshot” não se contenta em ser apenas um derivativo de sucessos passados; sua natureza autofágica aponta para um cinema de ação em colapso criativo, que, em vez de resistir, resolve rir de si mesmo. Disfarçado de adaptação de quadrinhos, ele adota os estigmas do gênero — o soldado ressuscitado, a vingança adulterada, a ciência como instrumento de dominação — para reinterpretá-los como fetiches narrativos de um público que não deseja novidade, mas sim a repetição com verniz tecnológico. A escolha de Vin Diesel para o papel central não é fortuita: o ator funciona como um emblema de previsibilidade, sua persona muscular e lacônica já naturalizada a ponto de confundir-se com o arquétipo que interpreta. Ao escalar-se como Ray Garrison, um cadáver biotecnológico com impulsos humanos e memória sequestrada, Diesel entrega à plateia não um personagem, mas um espectro reconhecível — e é exatamente por isso que funciona.

Essa duplicidade entre o que é representado e o que já se conhece sustenta a lógica do filme, cuja premissa gira em torno da manipulação deliberada de lembranças para fabricar um justiceiro sob controle remoto. Aqui, a analogia com o espectador é inevitável: assim como Garrison acredita ser o protagonista de sua vingança, o público, induzido por códigos visuais saturados, acredita estar diante de uma trama inédita. A performance de Guy Pearce como o Dr. Emil Harting aprofunda essa camada metanarrativa. Dono de uma carreira moldada na ambiguidade moral, Pearce encarna um antagonista que entende o jogo melhor que todos — inclusive o roteirista. Ao manipular emoções e projetar simulações como se fossem memórias autênticas, Harting não apenas rege o corpo de Garrison, mas atua como um diretor interno do filme, metonímia sutil da própria indústria que rege as emoções do público com algoritmos de nostalgia. O fato de sua vilania ser travestida de racionalidade científica apenas reforça a crítica velada: não se trata de uma disputa entre bem e mal, mas de controle sobre a narrativa — e sobre quem acredita nela.

Em termos visuais, “Bloodshot” opta por um exagero que beira o escárnio. Câmeras lentas gratuitas, balas que dilaceram carne sintética apenas para que esta se reconstrua em CGI, batalhas em corredores com névoa digital e iluminação artificial: tudo é pensado para parecer familiar, mas com uma camada de afetação deliberada, como se o filme dissesse ao espectador “nós sabemos que você já viu isso, mas vai fingir surpresa de novo”. O diretor Dave Wilson, novato na direção de longas, conduz esse espetáculo de hipervisualidade com mãos firmes — não por domínio técnico, mas por plena consciência de que sua missão não é criar tensão, mas sim replicar sensações. É nesse jogo de referências — “Matrix”, “Exterminador do Futuro”, “Robocop”, “Soldado Universal” — que o longa esconde sua verdadeira proposta: uma paródia travestida de blockbuster, que se alimenta da própria saturação estética para se posicionar, contraditoriamente, como produto consciente.

O fato de ter sido lançado em meio ao caos da pandemia e de ter falhado em termos comerciais não invalida sua relevância como artefato discursivo. Ao contrário: sua trajetória marginal amplia o status de “Bloodshot” como um cult em potencial, não porque seja subestimado, mas porque sua inteligência passa despercebida. A estrutura narrativa, costurada por elipses que ignoram lógica científica, e personagens secundários que funcionam como válvulas de alívio — como o carismático técnico de informática vivido por Lamorne Morris, que rouba cenas com precisão cirúrgica — colaboram para que o filme caminhe sobre a tênue fronteira entre o ridículo e o sofisticado. Não se trata, portanto, de um produto que falhou ao tentar ser sério, mas de um experimento que venceu ao não tentar nada além de seu próprio artifício. E é exatamente por isso que ele resiste, mesmo que como ruído incômodo dentro de um sistema saturado.

A presença de Eiza González como KT adiciona à fórmula uma dimensão pós-humana, em que corpos são vetores de funcionalidade militar e emoções são apenas falhas de programação. Ao lado de Garrison, sua personagem representa o que resta de autonomia numa realidade em que até a dor foi automatizada. Essa dualidade — entre o desejo de ruptura e o aprisionamento ao código — atravessa o filme como linha-mestra. É uma ficção de ação, sim, mas profundamente moldada por uma pergunta filosófica: o que significa ter livre-arbítrio quando até as lembranças são arquivos corrompidos por outro? A resposta, embora diluída em explosões e frases secas, pulsa no subtexto: o herói não se liberta ao matar o vilão, mas ao perceber que é um avatar de algo maior — uma engrenagem em um espetáculo onde a autenticidade é sempre uma simulação bem programada.

É possível que muitos ainda tentem medir “Bloodshot” com a régua de bilheteria ou de fidelidade à HQ original. Mas essa abordagem ignora sua verdadeira ambição, que não está em honrar personagens, mas em refletir o esgotamento dos próprios paradigmas narrativos que o originaram. Sua força não reside em diálogos memoráveis ou complexidade dramática, mas na acidez com que recicla o heroísmo falido em uma era de vigilância algorítmica e consumo automatizado. Se há uma grandeza disfarçada em “Bloodshot”, ela está precisamente na habilidade de se posicionar como um reflexo sarcástico de tudo que fingimos levar a sério. Em vez de prometer redenção, o filme oferece um espelho estilhaçado — e nos obriga a olhar para ele.

Filme: Bloodshot
Diretor: Dave Wilson
Ano: 2020
Gênero: Ação/Ficção Científica
Avaliação: 6/10 1 1
★★★★★★★★★★