Se você amou “A Ilha do Medo”, produção original da Netflix é tão boa quanto Divulgação / Netflix

Se você amou “A Ilha do Medo”, produção original da Netflix é tão boa quanto

Em “As Linhas Tortas de Deus”, Oriol Paulo constrói não apenas um thriller envolvente, mas um verdadeiro enigma sobre as fronteiras da sanidade, da percepção e da verdade. A protagonista, Alice Gould, é apresentada sob o olhar onisciente da câmera que, logo na abertura, sobrevoa uma paisagem montanhosa enquanto ela se dirige, sozinha, rumo ao sanatório. Essa cena inicial, aparentemente simples, é um presságio: o isolamento físico antecipa a solidão mental em que mergulharemos ao seu lado. A premissa parece direta — uma detetive particular se infiltra em uma instituição psiquiátrica para investigar a morte suspeita do filho de seu cliente —, mas a linha entre missão e delírio logo se desfaz, deixando o espectador à deriva entre o que é investigação e o que é alucinação.

O roteiro de Paulo intercala com habilidade duas narrativas: a investigação metódica conduzida por Alice e os eventos caóticos que culminam na morte de um dos pacientes do sanatório. A alternância entre esses planos narrativos — ora objetivos, ora subjetivos — conduz o público por um labirinto de pistas falsas, reviravoltas e incertezas. Ainda que parte do público possa sentir o tempo alongado de algumas cenas, o ritmo moroso é, na verdade, essencial para permitir que os detalhes ganhem densidade. Como em um quebra-cabeça com peças ambíguas, cada cena exige atenção redobrada, pois a verdade não se revela pela cronologia dos fatos, mas pela interpretação de suas nuances. E, nesse ponto, o filme não se limita a ser um “whodunit” — quem matou e por quê —, mas um “who is who”, um embate sobre a própria identidade de sua protagonista.

Alice, interpretada com precisão inquietante por Bárbara Lennie, é o epicentro de uma série de metáforas visuais e simbólicas que desafiam o espectador a decifrá-la. O filme oferece leituras múltiplas: os irmãos gêmeos Rômulo e Remo não são apenas personagens secundários, mas espelhos fragmentados da mente de Alice — sua dualidade, sua luta interna entre razão e delírio. A afeição de Alice por Rômulo e a indiferença por Remo sugerem não apenas a rejeição de uma parte de si mesma, mas uma tentativa desesperada de se agarrar a uma versão mais palatável de sua própria psique. Essa ambiguidade se expande para outras figuras — o gnomo e o “homem-elefante” —, que representam facetas da percepção que os outros têm dela: ora como vítima frágil, ora como predadora manipuladora. São construções alegóricas que alimentam a dúvida permanente: Alice está em busca da verdade ou em fuga de si mesma?

Essa ambivalência é o que torna “As Linhas Tortas de Deus” mais do que um exercício de estilo. O filme questiona, em última instância, os alicerces da nossa confiança. Não apenas a confiança que depositamos em personagens fictícios, mas a que dirigimos aos nossos próprios sentidos. Ao aceitarmos Alice como detetive desde os primeiros minutos, nos tornamos cúmplices de sua versão dos fatos. E quando as pistas se acumulam em sentido oposto, somos obrigados a refazer nossos julgamentos. A força da narrativa está justamente nessa manipulação deliberada, que revela o quanto nossa percepção é moldada por desejos inconscientes. Como alguém que, ao rever o filme, percebe o quanto foi iludido por pequenas pistas ignoradas, o espectador é confrontado com a fragilidade da própria interpretação. O roteiro, ao afirmar que “a verdade é aquilo que queremos acreditar”, nos devolve ao ponto de partida: o que é real, afinal?

Ao ambientar a história em 1979, Oriol Paulo adiciona uma camada de distanciamento crítico: estamos em uma era onde a psiquiatria era mais opaca, as investigações menos técnicas e a subjetividade mais tolerada. A polícia, muitas vezes impotente diante do caos, age como reflexo de um sistema onde o saber clínico se confunde com poder institucional. É nesse cenário que Alice tenta provar sua sanidade enquanto tudo ao seu redor colabora para soterrá-la em desconfiança. Mas talvez o que o filme queira dizer não seja se ela é ou não sã — e sim se isso importa. Porque o sanatório, com seus médicos que são quase tão instáveis quanto os internos, é um espelho do mundo exterior. E nesse espelho, cada um de nós projeta não a verdade dos outros, mas a verdade que somos capazes de suportar.

“As Linhas Tortas de Deus” não entrega certezas — e é nisso que reside sua grandeza. Ao flertar com a insanidade como metáfora da natureza humana, o filme desmonta as expectativas de um desfecho conclusivo e nos presenteia com algo mais raro: um convite à dúvida. E, assim como o julgamento final recai sobre Donadío, a nós cabe o papel de júri incerto diante de uma personagem que pode ser tanto justiceira quanto farsante, tanto vítima quanto algoz. Ao abraçar essa ambiguidade sem hesitação, Oriol Paulo não apenas reafirma sua maestria no gênero, como também nos lembra que, no fundo, somos todos leitores de linhas tortas.

Filme: As Linhas Tortas de Deus
Diretor: Oriol Paulo
Ano: 2022
Gênero: Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★