Denzel Washington, Jodie Foster e Willem Dafoe: elenco de peso em thriller inteligente e sagaz na Netflix Divulgação / Universal Pictures

Denzel Washington, Jodie Foster e Willem Dafoe: elenco de peso em thriller inteligente e sagaz na Netflix

Em “O Plano Perfeito”, Spike Lee não abandona sua verve provocadora — ele a disfarça. O que parece, à primeira vista, um exercício de gênero disciplinado, logo se revela um movimento de contenção estratégica. O diretor, conhecido por tensionar discursos raciais e escancarar estruturas sociais, opta aqui por uma elegância dissimulada: um thriller de assalto que se estrutura como um enigma moral, onde o jogo está menos nas armas e mais na construção narrativa. O filme não é sobre um roubo — é sobre controle. Quem manipula quem? Quem observa o quê? E, principalmente, quem está disposto a ceder para manter as aparências intactas?

A trama, sob seu verniz convencional, esconde um experimento sofisticado de linguagem e subtexto. Spike Lee orquestra um suspense que simula previsibilidade, mas só para subvertê-la. Em vez de correr atrás do impacto fácil, ele depura o artifício. Não há pressa; há método. O assalto ao banco, que poderia servir como ponto de partida para um desfile de pirotecnias narrativas, é tratado como uma equação precisa, onde cada movimento serve a um propósito maior: desestabilizar as expectativas do espectador, mas de modo quase imperceptível. O resultado é um filme que se movimenta com a frieza de um cálculo matemático e o magnetismo de uma performance teatral.

Denzel Washington conduz seu personagem como quem já viu demais para se surpreender. Sua performance repousa numa ambiguidade rara: é confiável, mas não imaculado; determinado, mas cansado. Ele é o tipo de detetive que decifra o crime menos pela lógica investigativa do que pela familiaridade com os desvios do sistema. Clive Owen, ao contrário, permanece intocável, até fisicamente — seu rosto, parcialmente oculto, é menos uma escolha estética do que uma declaração: sua identidade pouco importa frente à arquitetura do plano que conduz. Ele não quer ser lembrado como indivíduo, mas como conceito. E esse conceito — o do criminoso que desafia estruturas sem perder a compostura — sustenta a tensão moral do filme.

Há, ainda, um terceiro vértice: Jodie Foster. Sua personagem entra e sai do filme como uma força paralela, cuja autoridade não deriva de cargo público, mas de um poder silencioso que a torna mais temida do que respeitada. Ela não representa o capital apenas; ela é o capital. Não por acaso, sua presença jamais se submete ao caos do assalto — ela orbita acima dele, operando em outra lógica. É nesse ponto que o filme revela sua camada mais inquietante: o verdadeiro poder raramente precisa se sujar. Ele se manifesta à distância, com um telefonema, uma cláusula confidencial, um segredo enterrado.

A cidade de Nova York, que em outros filmes de Lee é palco efervescente de disputas e identidades, aqui funciona como uma engrenagem silenciosa. Ela não grita. Ela conspira. A fotografia constrói uma metrópole de ângulos precisos, espaços confinados e luzes que sugerem mais do que mostram. A trilha sonora acompanha esse movimento, pontuando não a ação, mas as pausas — como se o suspense não estivesse nos tiros, mas no que é dito em voz baixa, nos corredores, nas salas de reunião.

Spike Lee, com isso, realiza algo singular: em vez de utilizar o filme como plataforma explícita de discurso, como é sua marca habitual, escolhe um campo de batalha onde o discurso está na forma. A crítica social não desaparece — ela apenas muda de tom. Está embutida na escolha dos personagens, nos interesses em conflito, nas entrelinhas. É como se o diretor dissesse: se o mundo corporativo esconde seus crimes atrás de códigos legais, seu cinema pode fazer o mesmo — e vencer o jogo.

O ponto alto de “O Plano Perfeito” é justamente em sua recusa à obviedade. Nenhum personagem é herói, nenhum antagonista é simples. A trama se desenrola como um espelho labiríntico onde o espectador, ao buscar respostas, encontra mais dúvidas. Os flash-forwards, utilizados com precisão cirúrgica, não antecipam o final — sabotam nossa percepção linear do tempo e sugerem que compreender a verdade exige mais do que encadear eventos: é preciso decifrar intenções.

Esse é o verdadeiro truque do filme: convencer o público de que assiste a um jogo de polícia e ladrão, quando, na realidade, presencia um embate entre sistemas de poder. A violência é simbólica, as armas são metáforas, o dinheiro nem sempre compra o silêncio certo. E a moralidade, essa entidade tão evocada em narrativas de crime, se dilui entre as concessões que os personagens fazem para manter seus lugares no tabuleiro.

Sem apelos grandiosos nem firulas gratuitas, Lee prova que a sofisticação narrativa não precisa abrir mão do prazer cinematográfico. O filme diverte — mas com um sorriso torto. Ele entretém — mas com um incômodo persistente. Não é uma provocação frontal, como outras de sua filmografia. É uma infiltração. Um thriller disfarçado de entretenimento, cuja inteligência só se revela plenamente quando a cortina já caiu. E, quando cai, o que sobra é a certeza de que, mesmo quando silencia, Spike Lee continua sendo uma das vozes mais perspicazes do cinema atual.

Filme: Plano Perfeito
Diretor: Spike Lee
Ano: 2006
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★