“A Divina Comédia” é um segredo público. Está à vista de todos, celebrada, incensada, reverenciada como um monumento inamovível da literatura. Mas poucos entram realmente em suas galerias. Muitos a conhecem pelo nome, alguns citam seus versos iniciais, raros se lançam na travessia inteira. Ler Dante não é um gesto de erudição, é uma experiência que nos transforma. É impossível sair dela intacto. Este ensaio nasce desse fascínio e dessa inquietação: como é possível que uma das maiores criações do espírito humano ainda não tenha sido lida por todos?
A minha obsessão por Dante começou cedo. Aos 16 anos, em um colégio onde literatura era um nome longínquo, a “Divina Comédia” surgiu para mim como uma revelação. Na biblioteca da escola, entre edições gastas de Machado e coletâneas de vestibular, uma versão de capa dura, surrada, me atraiu. Eu sabia que era um clássico, mas não sabia o que me esperava. Quando comecei a ler, algo mudou. O impacto foi imediato, a sensação de estar diante de algo que me ultrapassava, mas que, de algum modo, me pertencia.
Ler Dante antes da maioria dos meus professores — eu já intuía isso — e colegas foi uma descoberta e um triunfo. Aos 16, há um orgulho secreto em saber algo que os outros não sabem. Enquanto a sala se dividia entre os que decoravam regras gramaticais e os que ignoravam a literatura, eu estava descendo ao Inferno. Sentia que Dante era meu. Mas o que começou como um prazer egoísta logo se tornou uma necessidade visceral. Não bastava ler, era preciso compartilhar. E comecei a falar dele com todos na escola.
Dante voltou muitas vezes ao longo da minha vida. No curso de Letras, quando sua presença era incontornável. No bacharelado em Literatura, a formação oficial de um crítico literário, em uma disciplina de Literatura Comparada, com a professora Suzanna Cânovas, percorremos o livro todo, com aparato bibliográfico selecionado e de qualidade. A paixão por Dante da Professora Suzanna era uma lição por si. No doutorado, nos seminários que celebravam sua obra na USP, o livro voltou. Mas foi no ensino que a “Divina Comédia” se tornou íntima. Durante anos, na escola Alef-Peretz Hebraica, ministrei a disciplina Leitura e Interpretação dos Clássicos Ocidentais. Foram meses dedicados a Dante, aula após aula, verso após verso. O poema não era mais um texto, e sim um território explorado em conjunto, descoberto e redescoberto com cada turma.
São Paulo é uma cidade dantesca. Não apenas pelo caos urbano que nos faz atravessar infernos cotidianos, mas porque Dante está em sua memória cultural. No Colégio Dante Alighieri, no nome de ruas, nos cafés onde se discute literatura, nas sessões públicas da Academia Paulista de Letras. Durante anos, minha agenda cultural se cruzou com a de Dante. Ele estava lá, nas palestras da Casa das Rosas, nas leituras da Biblioteca Mário de Andrade. Dante nunca me abandonou, ou eu nunca o abandonei.
A primeira leitura foi um rito de iniciação. A cada retorno, uma nova camada se revelava. Aos 16 anos, o Inferno era um espetáculo de imagens poderosas. Anos depois, percebi que o Purgatório era o verdadeiro coração do poema. Mais tarde, foi o Paraíso que me arrebatou, e então compreendi que a “Comédia” só existe por inteiro, que ler apenas o Inferno é como interromper uma sinfonia no primeiro movimento.
Minha mãe, professora de literatura, hesitou ao me ver lendo Dante. Seu esforço sempre foi me formar na literatura brasileira. Ao me ver mergulhado na “Divina Comédia”, ficou orgulhosa, mas também preocupada, sabia que ali se rompia um elo. Dante foi uma das primeiras leituras que escolhi por conta própria, sem orientação materna. Foi um passo para a autonomia intelectual.
Ler Dante pela primeira vez é uma ampliação definitiva da consciência. Nada permanece igual depois. O tempo, a moral, a justiça, a ideia de transcendência, tudo adquire novas proporções. Se há um momento em que alguém deixa de ser apenas um leitor para se tornar um amante da literatura, talvez seja esse. O impacto não vem apenas da grandeza do poema, mas do que ele provoca no leitor.
Este ensaio não pretende ser um estudo frio. Não é um tratado acadêmico, não se destina a especialistas. Não quero dissecar Dante, nem poderia fazer isso, é tarefa para uma vida, ou muitas vidas; quero trazê-lo para perto, torná-lo necessário, urgente. A literatura não sobrevive apenas pelo que diz, mas pelo desejo que desperta. A missão de um crítico literário não é só analisar, avaliar, julgar, é seduzir também.
Se este ensaio for bem-sucedido, ele não será lembrado. O que ficará será Dante. Se ao final dessas páginas o leitor buscar a “Divina Comédia”, meu trabalho terá sido cumprido.
Dante, o primeiro moderno

Dante nos lê melhor do que nós mesmos. Há escritores que nos encantam, outros que nos transformam, mas poucos têm o poder de nos interpretar. Dante é um desses. Seu poema é uma jornada espiritual e uma radiografia da alma humana. Se ainda o lemos, se ainda nos inquietamos com sua arquitetura de castigos e redenções, é porque sua visão do mundo permanece, de algum modo, intacta. Passaram-se séculos, mudaram-se as nações, os impérios ruíram, e a “Divina Comédia” segue como um espelho. O que Dante viu em seu tempo, vê em nosso tempo. O que ele percebeu sobre a natureza humana continua diante de nós.
O exílio é o verdadeiro ponto de partida da “Divina Comédia”. Se Dante tivesse morrido em Florença, se tivesse envelhecido entre seus iguais, talvez nunca tivesse escrito seu poema. Mas ele perdeu tudo. Foi expulso, errante, condenado a nunca mais voltar. Sua obra nasce dessa privação, da necessidade de reconstruir na literatura a cidade que lhe foi arrancada na vida. Sua Florença foi fechada para sempre, mas ele abriu para si uma outra pátria, um outro espaço: a eternidade da palavra.
A “Divina Comédia” é um monumento de vingança e salvação. Dante usa sua pena para reordenar o mundo, redistribuir as hierarquias, punir os inimigos e glorificar os aliados. Quem não entende isso, não entende Dante. Ele não é um profeta neutro, nem um espectador passivo do destino. Ele é o primeiro grande escritor a transformar sua própria história em eixo de um poema épico. Até então, a epopeia pertencia aos deuses, aos heróis míticos, aos grandes conquistadores. Com Dante, a literatura deixa de narrar as façanhas alheias e passa a ser, também, um lugar da subjetividade.
Ao se colocar no centro da epopeia, Dante fundou a literatura moderna. Homero escreveu sobre Aquiles e Odisseu, Virgílio sobre Eneias. Dante escreveu sobre si mesmo. Ele não é um narrador onisciente que observa os acontecimentos de fora. Ele está dentro da história. O que importa não é a travessia pelo Inferno, pelo Purgatório, pelo Paraíso; o que importa é quem atravessa. E é ele. O eu se torna matéria da literatura. Sem isso, não haveria “Dom Quixote”, não haveria “Em Busca do Tempo Perdido”, não haveria o romance psicológico, o romance de formação, a literatura da memória.
Dante inventa a introspecção épica. Ele olha para dentro ao mesmo tempo em que descreve o cosmos. Antes dele, a literatura era um palco onde as ações se desenrolavam. Com ele, torna-se também um espelho. A “Divina Comédia” é um mapa do além e um roteiro da mente de seu autor. Quando lemos, percorremos seus medos, dúvidas, obsessões. A literatura passa a ser um relato, um exame de consciência.
Nenhum poeta envelheceu tão pouco. Há escritores que são inseparáveis de seu tempo, e há aqueles que permanecem atuais, qualquer que seja a época. Dante é assim. Suas palavras ainda queimam, interrogam, nos arrastam para dentro de sua visão de mundo. Ele não é um fóssil literário, é uma força ativa, que continua a gerar debate, desconforto, revelação. Lemos a “Divina Comédia” não como quem visita um museu, mas como quem caminha por um campo vivo, perigoso, fascinante.
O gênio de Dante atravessou os séculos porque não fez concessões. Ele não escreveu para agradar, não atenuou sua crítica, não se preocupou em ser diplomático. Suas sentenças são definitivas. Ao ler seus versos, temos a sensação de que estamos diante de uma voz que não recua, que não hesita. Essa certeza, essa clareza absoluta, é o que o torna tão desconcertante. Não há nada de tímido ou vacilante na “Divina Comédia”. Seu autor fala com a convicção de quem sabe que está escrevendo algo que nunca será esquecido.
A modernidade de Dante está no modo como ele estrutura a experiência. A “Divina Comédia” não é uma narração linear. Ela é dividida em camadas, construída como um sistema de significados múltiplos. Cada personagem, paisagem ou metáfora pode ser lida sob diversos ângulos. Ele antecipa a literatura que exige releitura, desafia o leitor, não se esgota em uma interpretação única. Por isso ele continua vivo: sua obra não tem fim.
Se há um autor que parece ter escrito para todos os tempos, é Dante. Sua visão do poder, da moralidade, da justiça, da queda humana, tudo ainda ressoa. Seu exílio nos fala sobre os deslocados de hoje, sua crítica aos governantes soa familiar, seu Paraíso ainda é o que buscamos e nunca alcançamos. O século 14 é apenas o pano de fundo. O que importa é que Dante fala sobre nós.
Não lemos Dante como um poeta do passado, e sim como um contemporâneo. Ele está à nossa frente, nos instigando, nos desafiando a entender o mundo e a nós mesmos. A “Divina Comédia” é um monumento, fixa na eternidade, e ao mesmo tempo um organismo vivo. Quem se arrisca a lê-la nunca mais será o mesmo.
Por que “Comédia”? Dante é engraçado?
Dante chamou sua obra de “Comedia”, sem o adjetivo “Divina”. O acréscimo veio depois, consolidado por Giovanni Boccaccio e impresso pela primeira vez em 1555. A escolha do termo “comédia” pode parecer estranha ao leitor moderno, habituado a associar o gênero ao riso. É que no pensamento medieval e aristotélico, a comédia não se define pelo humor, mas pelo seu movimento estrutural. A tragédia é a narrativa que conduz da grandeza à ruína. A comédia, ao contrário, eleva seus personagens, leva-os do erro à plenitude, ao riso, à graça ou à resolução de todos os nós.
Aristóteles definiu a comédia como um gênero que termina na ordem restaurada. Dante absorve essa lógica e a aplica à maior jornada espiritual já escrita. A “Divina Comédia” se estrutura sobre um arco ascendente: o Inferno é queda, o Purgatório é esforço, o Paraíso é plenitude. Se o título do poema seguisse a tradição das epopeias greco-romanas, poderia se chamar “O Exílio de Dante” ou “A Jornada da Alma”, algo semelhante. Mas Dante escolhe “Comédia” para deixar claro que seu percurso não é destruição, e sim redenção.
A concepção medieval de comédia se baseia no desfecho. No mundo clássico, a tragédia terminava em sofrimento e perda irreparável. A comédia conduzia a um final harmonioso. A “Divina Comédia” não só narra um caminho rumo à bem-aventurança, ela é construída como um mecanismo narrativo que conduz à luz. Seu nome reflete essa estrutura interna.
O Inferno é o ponto mais baixo da trajetória. O poema começa no medo, na errância, no desespero absoluto. Dante está perdido, em crise, vai atravessar um bosque escuro. O Inferno é movimento descendente, cada círculo leva a um estado mais degradado da alma. Quem permanece no Inferno está condenado à estagnação, pois ali não há mudança possível.
O Purgatório é o grande diferencial da “Comédia”. O Inferno já existia na tradição cristã e o Paraíso era a recompensa final das almas justas. Mas o Purgatório, com seu sistema de purificação gradual, foi um conceito relativamente novo na teologia medieval. Dante transforma essa ideia em uma montanha que se escala lentamente, um espaço onde há tempo, mudança, progresso. Sem o Purgatório, o poema teria um eixo muito mais rígido. Com ele, Dante constrói uma narrativa de transformação moral e espiritual.
O Paraíso é a culminação do movimento cômico. O mundo medieval se estruturava sobre a convicção de que o universo tinha um sentido. O final feliz não era uma concessão sentimental, mas a confirmação de que o mundo era regido por uma ordem suprema. O Paraíso não é estático, é puro movimento, vibração, luz. O último canto do poema não se fecha em uma conclusão terrena, mas se dissolve na experiência do divino, na totalidade de um universo guiado pelo amor.
Dante constrói a primeira grande história de redenção da literatura. Seu protagonista não é um herói que conquista terras ou combate inimigos físicos. Ele atravessa os reinos do além para compreender sua própria alma e ordenar seu entendimento do mundo. Essa estrutura serviu de modelo para inúmeras narrativas posteriores, do romance de formação ao épico espiritual.
A lógica aristotélica da comédia se confirma no percurso do protagonista. Dante começa no erro e termina na visão da luz divina. Essa construção dramática se tornou uma das grandes matrizes da literatura ocidental. De “O Idiota”, de Dostoiévski, à jornada de aprendizado de “Em Busca do Tempo Perdido”, o esquema da elevação do espírito se repete.
O título “Comédia” também tem um efeito retórico. Em uma época de tratados teológicos rigorosos e textos filosóficos complexos, a escolha de um nome simples sugeria um convite mais amplo à leitura. Dante escreve um poema que contém o universo, mas o apresenta com um título acessível, quase modesto. Isso reforça seu desejo de falar ao povo, não apenas à elite letrada.
A noção de comédia que Dante aplica ao poema não exclui o sofrimento. Seu riso não é o da sátira vulgar, é o do entendimento final. Se há um riso no Paraíso, ele nasce da plenitude, da ausência do medo, do reconhecimento de que tudo se encaixa no seu devido lugar.
O nome da obra carrega também um paradoxo. Quem lê o Inferno pode se perguntar como algo tão brutal pode ser chamado de comédia. Mas o sentido do título só se completa no fim. O poema precisa ser lido inteiro para que seu nome faça sentido. A comédia não está no início, está na promessa de que a jornada tem um destino superior.
Dante nomeia sua obra com um conceito que exige paciência do leitor. Quem se detém na primeira parte jamais compreenderá a escolha do título. A “Comédia” não é um espetáculo fácil. Seu nome é uma senha, um enigma, uma promessa. Só quem percorre todo o caminho entende o que Dante quis dizer.
O tempo e a eternidade da “Divina Comédia”

Quanto ao tempo, Dante constrói, em seu opus magnum, um tempo que não se curva ao cronológico, mas à metafísica cristã. Desde os primeiros versos, o poema estabelece um tempo que não se mede em horas, mas em estados da alma. “Por mim se vai à cidade do pranto / por mim se vai à dor eterna, / por mim se vai entre a perdida gente” (Inferno, Canto 3). O “por mim” repetido, com sua estrutura de anáfora, não apenas enfatiza a inexorabilidade do destino, mas cria uma forma verbal imutável, como se o tempo já estivesse fixado antes mesmo da travessia.
Platão dizia que o tempo era a “imagem móvel da eternidade”. Em Dante, essa concepção se desdobra no Purgatório, onde há mudança, passagem, espera. No Inferno, o tempo é estático: os condenados não têm futuro, apenas a repetição infinita do castigo. No Paraíso, a eternidade não se mede, é plenitude absoluta. “Mas já vês como declina o dia, / subir já não se pode após o vespro, / lembra-te, pois, de fortalecer teu ânimo” (Purgatório, Canto 7). O verbo “declina” marca a passagem do tempo, essencial para a redenção, ausente no Inferno e irrelevante no Paraíso.
Aristóteles define o tempo como medida do movimento. Se não há mudança, não há tempo. O Inferno é imobilidade. Cada alma fixada em sua culpa, presa no instante eterno do erro. O Purgatório tem degraus, um caminho real de transformação. O Paraíso não é sucessão, mas um único momento em expansão, como expressa Dante: “A suprema luz, que em si mesma arde, / em si mesma se divide e se compreende” (Paraíso, Canto 30). O verbo “arde” sugere movimento, mas não transformação: é uma chama plena, uma eternidade iluminada.
No Inferno, o tempo é um eterno presente. Dante usa o pretérito para introduzir as cenas, mas o presente para as falas, criando a sensação de um ciclo que nunca cessa. “Vi mais de mil sobre as portas, / precipitados do céu, que furiosos / diziam: ‘Quem é este que sem morte / atravessa o reino dos mortos?’”(Inferno, Canto 8). O “vi” inicial fixa um passado, mas o “diziam” em presente estendido torna a cena perpetuamente atual.
Santo Agostinho dizia que o tempo era um distúrbio da alma. Para ele, o presente real é apenas um ponto sem espessura. O Inferno de Dante reflete essa visão: os condenados habitam um presente eterno sem horizonte. O Purgatório, ao contrário, é um tempo com futuro. O Paraíso já não precisa de tempo, pois é o próprio eterno. “A suprema luz, que de si mesma procede / por si mesma se divide e se compreende” (Paraíso, Canto 28). A eternidade dantesca é um tempo que não avança, mas existe em sua totalidade.
O Purgatório é o único espaço onde o tempo realmente flui. As almas sentem a passagem dos dias, das horas, a sombra que se move. Mas é um tempo que não se mede em relógios, e sim na consciência da alma, no aprendizado, na ascensão. “Íamos sob a luz do entardecer, atentos / bem além do habitual, e com o passo lento” (Purgatório, Canto 27). O “passo lento” não é apenas físico: é moral, é espiritual.
No Paraíso, Dante precisa reinventar a gramática. Como descrever o que está fora do tempo? Ele recorre a paradoxos: “Luz intelectual, plena de amor, / amor do bem supremo, cheio de alegria; / alegria que ultrapassa todo doce” (Paraíso, Canto 30). A luz que é amor, o amor que é alegria, a alegria que transcende. Aqui, não há tempo. Apenas presença absoluta.
No Inferno, o tempo oprime. No Purgatório, ensina. No Paraíso, dissolve-se. O uso dos tempos verbais reflete essa progressão. No Inferno, predomina o presente perpétuo. No Purgatório, o futuro se insinua. No Paraíso, tudo já é, sem antes ou depois.
O instante final de Dante sintetiza todos os tempos em um só. O tempo humano se curva ao tempo divino. “Mas já girava meu desejo e meu querer, / como roda movida igualmente, / pelo amor que move o sol e as outras estrelas” (Paraíso, Canto 33). O desejo e a vontade já não pertencem à sucessão, mas giram em um único eixo de amor absoluto.
A estrutura da “Divina Comédia” reflete essa concepção de tempo. O Inferno é um tempo circular: os condenados retornam sempre ao mesmo ponto. O Purgatório é linear: cada alma progride. O Paraíso é imóvel: não há amanhã, pois tudo já é plenitude. Dante não descreve apenas o tempo. Ele o recria, o submete à ordem poética e teológica.
A Escolástica na “Divina Comédia”
A “Divina Comédia” é uma catedral da razão. Cada verso segue uma lógica interna rigorosa, espécie de roleta-eterna-giratória sempre a pular de silogismo em silogismo tomista. Dante alerta: “Ó vós, que tendes sã inteligência, / vede a doutrina oculta sob / o véu dos versos de estranha aparência” (Paraíso, Canto 9). Seus versos são argumentos, sua poesia é teologia.
A Escolástica estrutura o poema. Dante emprega o método da “quaestio disputata”, a arte medieval de apresentar um problema e resolvê-lo pela razão, levada à categoria de filosofia em forma de beleza do pensamento que se forma na frente do leitor: presente de gênio para gênio, troca de favores no acaso, entre Tomás de Aquino e Dante Alighieri — a simbiose de “Suma Teológica” com “Divina Comédia”, difícil resistir a não confessar que me inquieto com isso, me movimento involuntariamente, como um crente diante de sua visão particular de Paraíso: o mais inteligente dos homens, diluído na mais bela obra literária. Ave, Palavra! Graças!
Natural e puro, um Dante perfumado de Aquino usa a estrutura das questões disputadas das “Suma Teológica” e “Contra os Gentios”, como neste exemplo: “Se nova lei foi por Deus revelada, / como pode ser justo condenar / quem dela jamais teve notícia?” (Inferno, Canto 4). A dúvida, a objeção, a resposta. O poema opera como um tratado filosófico tomista.
O Inferno é um tribunal matemático. Os pecados são distribuídos com exatidão escolástica. No Canto 5, Minos julga as almas com precisão lógica: “Quando a alma perversa ali comparece, / confessa todos os pecados seus; / e Minos, que os julga, / vê qual lugar do Inferno lhe compete, / e quantas voltas em sua cauda enrosca, / tantas é a profundidade onde a envia” (Inferno, Canto 5). O número governa o castigo, a lógica estrutura a pena.
No Purgatório, Dante aplica Aristóteles. A virtude se aprende pela repetição, pelo hábito, pela prática. “Ali, ao pé da montanha, achamos gente, / que estava nos rochedos tão absorta / como o homem se perde em seus pensamentos” (Purgatório, Canto 10). O esforço moral é um exercício.
O Paraíso é a realização da ordem tomista. A graça se distribui segundo a capacidade de cada alma. “Do sumo bem, que sopra em todo o céu, / cada qual recebe luz segundo é apto / para absorver o raio verdadeiro” (Paraíso, Canto 3). A hierarquia moral é absoluta.
A “Comédia” é poesia, e é sistema. Cada verso é um teorema, cada metáfora, um argumento. Dante não apenas descreve o mundo medieval. Ele o pensa, o ordena, o esculpe com a precisão de um arquiteto da verdade.
A estrutura numérica do poema é uma marca da Escolástica. O número três governa tudo: três partes (Inferno, Purgatório, Paraíso), versos organizados em tercetos, três guias espirituais. A matemática medieval via na simetria uma manifestação da ordem divina. Dante transforma isso em poesia.
O método escolástico se infiltra até na narrativa. Dante nunca só afirma algo. Ele expõe, questiona, refuta, comprova. Quando Virgílio o orienta, ele não dá respostas prontas, ensina a raciocinar. “O mundo vos oferece falsas luzes / que vos desviam do reto caminho” (Purgatório, Canto 27). Virgílio é um guia, e um mestre escolástico.
A “Comédia” é a última grande obra da Idade Média e o primeiro monumento da modernidade. Depois de Dante, a literatura não pode mais ignorar a lógica, a construção matemática da forma, o rigor da argumentação. Seu poema é, ao mesmo tempo, uma suma teológica e um delírio poético.
Com Dante, a Escolástica atinge seu ápice e seu fim. Depois dele, o pensamento medieval entra em declínio. Ele escreve o último grande livro da Idade Média e a primeira obra do mundo que virá. Sua catedral verbal se ergue iluminada pela lógica e pelo fogo da poesia.
A abertura da “Comédia”

É o início mais apoteótico da literatura. Não há modéstia, hesitação ou contenção retórica. Desde os primeiros versos, Dante anuncia uma jornada insuperável. O poema não pede licença: ele se impõe como revelação, um novo código da experiência humana. Quem lê, desde o primeiro instante, percebe que entrou em território sagrado. Esta não é uma obra qualquer. É uma fundação. Um absoluto.
O primeiro canto do Inferno inaugura a epopeia com impacto sem precedentes:
“No meio do caminho da minha vida
Por muito errar, entrei numa selva escura
E o rumo certo ficou para trás, perdido.
Ah! Como é difícil descrever como era
Aquela floresta selvagem, densa e terrível.
Apenas pela lembrança, meu medo se renova!
Nem mesmo a morte poderia ser tão amarga.
Mas, antes de falar sobre o bem que encontrei,
Relatarei as demais coisas que meus olhos viram.
Não sei, ao certo, como adentrei aquela selva.
Talvez eu estivesse em transe, ou em sono profundo
No ponto em que me afastei do caminho certo.
Quando cheguei ao sopé de uma colina
Localizada nos limites daquele vale,
Com enorme terror meu coração se atormentou”.
Dante se coloca no meio da vida, aos 35 anos, idade simbólica. Segundo a tradição cristã, Cristo foi crucificado aos 33. Dante, dois anos além, encontra-se perdido. Ele não é um herói épico convencional, cheio de certeza e bravura. É um homem à deriva, em crise, em busca de redenção e revelação.
A selva escura é uma imagem que nasceu imortal. Além de uma floresta literal, é um estado de alma. Representa o pecado, o afastamento da graça, o desespero da existência sem Deus. É a metáfora essencial da condição humana: um mundo caótico, de escolhas erradas, medo e ignorância.
Desde o início, a estrutura da narrativa é clara. Dante será guiado. Ele não está sozinho. Como todo pecador arrependido, precisa de condução. Surge Virgílio, seu intérprete do desconhecido. Sua aparição confirma a fusão radical que Dante realiza entre o mundo clássico e o cristão. Virgílio, poeta da “Eneida”, símbolo da razão, assume agora o papel de mestre em uma jornada teológica. Dante une passado e presente, o mundo greco-romano e a fé cristã medieval.
A topografia do poema é rigorosa e simbólica. A selva escura é um vale, um lugar de queda. O monte à frente representa a ascensão espiritual. Dante precisa subir. Mas não consegue sozinho. Antes de qualquer redenção, há medo, hesitação, terror. Ele vê feras bloqueando seu caminho. A pantera, o leão e a loba são alegorias dos pecados. A escalada não será fácil.
Então, surge uma luz. Quando Dante olha para cima, vê o sol iluminando o cume do monte. É a graça divina, sempre presente, mas distante para quem se afundou no erro. Essa dinâmica reflete a teologia cristã medieval. O homem nasce para a luz, mas cai nas trevas. A salvação exige luta, esforço, um percurso de expiação, sacrifício, dor.
Dante revoluciona a narrativa teológica. Antes dele, a religião era contada em hagiografias, parábolas, sermões. Ele a transforma em poesia épica, erguendo um sistema rigoroso, onde cada elemento tem um peso moral e filosófico.
A jornada do poeta é a jornada do Ocidente. Ele sintetiza os medos, as dúvidas e as esperanças de uma civilização que, após séculos de caos medieval, anseia por um sentido cósmico, por uma ordem, um destino. Ao se colocar no centro do poema, Dante não apenas narra um tempo, ele o funda. Após ele, nada mais será igual. Ele se torna o eixo da literatura, um marco zero do que virá depois.
Cada verso inicial contém toda a “Divina Comédia”. A selva escura, o caminho perdido, o medo, a busca pelo alto, o guia, a luz. Tudo está aí. Os primeiros quinze versos anunciam todos os cantos do poema. O poeta se torna medida do tempo. Depois dele, toda grande literatura carregará essa subjetividade: o tempo do personagem que conduz a trama determina o tempo ontológico da obra de arte.
A Geografia do Inferno e suas influências clássicas

Dante mapeia o Inferno como a racionalidade do invisível. Seu Inferno não é um caos abstrato, é um espaço concreto, onde o sofrimento se distribui em círculos, vales, rios, muralhas, torres, abismos. O poeta não especula, constrói. O horror ganha geografia, assume contornos de um mundo palpável. No Canto 3, ao atravessar as portas da condenação, Dante descreve o limiar do abismo:
“Deixamos para trás o limiar triste, / e a treva escura, e o estrondo e o lamento, / vibrando a grande abóbada sem luz”. (Inferno, Canto 3)
O Inferno é mais do que um conceito, é um território. Tem fronteiras e distâncias. O espaço aqui não é uma alegoria solta, é parte da condenação.
O poema é inaugural: a primeira grande geografia literária. Antes dela, o mundo da tradição clássica era fragmentado. O Hades de Homero era uma névoa difusa, onde as almas não tinham peso, corpo ou lugar fixo. O Inferno virgiliano já avançava um passo, com setores definidos, um guia, um sentido de ordem. Mas foi Dante quem transformou o abismo em topografia rigorosa, matematicamente distribuída. Matemática precisa que ecoa em “Ulysses”, de Joyce, que escreveu fluxos de consciência para seus personagens, cuja leitura leva exatamente o tempo que se gastaria percorrendo o caminho do personagem na cartografia precisa de Dublin que o romance encerra: importante lembrar que Joyce tinha duas metas como autor, superar Dante e Shakespeare. Perdeu para os dois. Mas ninguém lutou mais bravamente do que ele.
O Inferno de Dante não é um sistema fechado, ordenado, lógico. No Canto 11, Virgílio explica a hierarquia dos pecados e a precisão das punições:
“Cada crime tem peso e grau distinto, / e cada um encontra o seu castigo, / com pena mais ou menos dolorosa”. (Inferno, Canto 11)
Nada é arbitrário. Cada círculo é um degrau da degradação moral. Dante não descreve apenas o Inferno, ele o organiza.
O Inferno dantesco surge da tradição épica. A descida ao submundo é um dos grandes rituais do herói antigo. Ulisses consulta Tirésias no Hades, Eneias desce com a Sibila ao Inferno latino. Mas há uma diferença fundamental: Ulisses e Eneias são visitantes do mundo inferior. Dante, não. Ele vive o Inferno, atravessa-o como pecador e aprendiz. Não há distanciamento, há imersão.
O primeiro obstáculo do abismo é o Aqueronte, o rio da travessia. Caronte, o barqueiro infernal, conduz os mortos à margem da perdição:
“Eis que sobre uma barca que se avança, / branca de tempo, os olhos flamejantes, / o velho Caronte a todos faz sinal”. (Inferno, Canto 3)
A cena não é metafórica. Dante vê as águas, sente o vento, ouve os lamentos. O Inferno começa com uma passagem física.
A jornada é para frente e para baixo. Virgílio e Dante descem, sempre descem. No Canto 7, ao se aproximar do Estige, o poeta vê um pântano de almas furiosas, mergulhadas no lodo, incapazes de articular palavras:
“Atravessamos lenta água imunda, / rodeada por sombras desgrenhadas, / a bradar furiosas sem razão”. (Inferno, Canto 7)
A geografia do Inferno é simbólica. Quanto mais se desce, maior o afastamento da luz divina.
O Inferno também tem muralhas. No Canto 9, Dante e Virgílio chegam à cidade de Dite, um império demoníaco, com torres e portas cerradas:
“Eis lá ao longe as torres incandescentes, / como ardendo no fogo das fornalhas, / e ao longe escutamos vozes roucas”. (Inferno, Canto 9)
O Inferno é uma estrutura. Tem muros, exércitos, política própria. É um reflexo do mundo humano, ou civilização invertida. Ele absorve os mitos. O Minotauro guarda os círculos da violência, os Centauros vigiam os condenados no rio de sangue. No Canto 12, Dante encara essas criaturas híbridas:
“Ó cruel turba! O que tens contra mim? / Não me toques, centauro, pois estou / guiado por aquele que me salva”. (Inferno, Canto 12)
Aqui, Dante narra um espaço ao mesmo tempo em que o habita. Os monstros são figuras reais: os carcereiros.
No Canto 16, a descida se torna abismo. Virgílio lança o cinto de Dante ao vazio, e um monstro alado, Gerião, surge do escuro para carregá-los:
“E como aquele que desce com temor, / na frágil embarcação ao ver as ondas, / assim desci montado sobre a fera”. (Inferno, Canto 16)
O Inferno tem profundezas. É poço, precipício, é onde cada queda é condenação, mais e mais severa. Mas o ápice do horror está no Cocito, o gelo eterno do fundo do Inferno. Ao contrário do imaginário popular, o Inferno de Dante não termina em fogo e sim em gelo. O centro do Inferno é estagnação absoluta. No Canto 34, o poeta vê Lúcifer, aprisionado em um lago congelado:
“Eis que sob os meus pés eu vi estendido / um lago de cristal, que não reflete / de tão puro e tão denso que se via”. (Inferno, Canto 34)
O frio do Cocito não é ausência de calor, mas a impresença de Deus. O Inferno dantesco não queima, já que não é de fogo; feito de gelo, ele congela, paralisa: uma senha para a vida. A estagnação é demoníaca. Evolua, se queres ascender. Ao céu, a qualquer coisa.
A geometria do Inferno é pura aplicação matemática. Seu formato é um funil invertido, escavado na terra, cada círculo mais estreito e terrível do que o anterior. Esse rigor ecoa tanto a visão medieval do cosmos quanto a precisão grega da simetria e da ordem. Longe de ser apenas um cenário, torna-se personagem, disputa com o herói, e talvez tenha se tornado maior do que seu criador queria, já que o projeto do poema caminha para o Paraíso. Tudo é preparação para lá, e se lemos com calma a última parte, veremos um Dante mais que Dante, quase um dobrar de apostas. Poucas coisas na literatura podem rivalizar com as imagens, lances e ritmo do Paraíso. É um deslocamento, reflete uma mudança interna. O espaço é psicológico pela primeira vez no Ocidente, de forma a talhar, pintar, sem determinar, o herói, seu guia e as figuras com as quais cruza seu caminho. Dante não caminha em pedra e lama; ele caminha dentro da alma humana.
O Inferno é a negação da ascensão. Cada passo para baixo é um passo para longe da luz. A jornada infernal é uma prisão sem saída. O próprio espaço condena. Essa condenação, porém, não é caótica. Os rios infernais estruturam a viagem. Aqueronte, Estige, Flegetonte e Cocito são os marcos da travessia. A topografia do Inferno é fluida, parece selvagem, mas obedece a uma ordem, ainda que natural em alguns aspectos.
O poema do florentino também inaugura, na literatura, a presença de um atlas do além. Seu Inferno é um mapa moral. Ele descreve o castigo, organiza os pecados, distribui o sofrimento, estrutura a danação. Uma legítima máquina de justiça, reflexo invertido do cosmos. Nenhum poeta antes dele construiu um espaço tão arquitetonicamente perfeito. Nenhuma visão do Inferno foi tão vívida, superando, no imaginário popular de sua época e de todas as que vieram depois, até mesmo as imagens do Apocalipse. Depois de Dante, é difícil ler o Apocalipse sem ter vontade de usar, numa anacronia perdoável, o adjetivo “dantesco”.
Dante não escreveu um poema sobre o Inferno.
Ele escreveu o Inferno, inventou-o como o conhecemos. Deu vestimenta, estatura, voz, corpo e aroma para todos os pavores e medos que nos assolam, mas não o suficiente para nos impedir de sermos pavorosos, perversos e cruéis.
Inferno: fascínio pelo abismo

Porta de entrada da “Divina Comédia”. Nenhuma outra parte do poema teve tanto impacto visual, literário e cultural. Sua iconografia atravessou séculos. Os círculos concêntricos, as chamas, os condenados retorcendo-se em suplício, os lamentos eternos, tudo ali ressoa com um poder quase cinematográfico. Foi o Inferno que encantou artistas como Gustave Doré e Botticelli. Foi ele que inspirou escritores, teólogos, cineastas e até a novela espírita da Rede Globo de Televisão, “A Viagem”, de Ivani Ribeiro, com seu plano de danação e do antagonista todo inspirado no Inferno de Dante. Mas é preciso ter consciência: ele é apenas o começo. O poema não termina ali, mas é ali que o leitor se detém com mais frequência. Editoras chegam a comercializar essa parte separada, como livro independente. Coisa lamentável e de ética duvidosa. Respeito!
Claro que não é só o apelo imagético que captura os leitores há quase 700 anos. É realmente um triunfo irrepetível do ideal literário atemporal: harmonia indissociável de conteúdo e forma. A forma se torna conteúdo quando o assimila e faz com que sua essência se torne outra coisa, que só existe naquela obra de arte. Exemplos que se aproximam: as frases quilométricas de Proust têm, na formação física de sua estrutura frasal, a fluência temporal ininterrupta da durée bergsoniana, que influencia a concepção temporal memorialística da obra de Proust.
Em Dante, a organização tomista, clássica e filosófica do poeta contamina o Inferno sem descaracterizar ou roubar sua essência. Ele nos apavora, quando o lemos ou o vemos em outra mídia ou filmes, mas é pura estrutura, ainda que estrutura infernal. Para aterrorizar, alertar ou aplicar a justiça cristã com o metro da onisciência de Deus.
O poema não apresenta um caos desordenado. Cada pecado é punido com precisão absoluta, segundo o conceito de peso e contrapeso. O castigo reflete a natureza do crime, não como vingança, mas como coerência. O luxurioso é levado pelo vento, pois na vida foi dominado por impulsos descontrolados. O hipócrita caminha sob capas pesadas, porque na vida ocultava sua falsidade sob aparências virtuosas. A vidente é condenada a andar sempre para a frente com a cabeça virada para trás, já que passou a vida tentando ver adiante do tempo que Deus lhe disponibilizou. A estrutura moral é inflexível. Não há perdão no Inferno. Não há mudança. Apenas permanência.
O Canto 5 é um dos grandes momentos do poema. Dante encontra Francesca da Rimini e Paolo, dois amantes condenados ao segundo círculo. O vento os arrasta sem cessar, como foram arrastados pelo desejo em vida. Dante se comove. Francesca fala de amor, de leitura, da incapacidade de resistir ao impulso. O leitor moderno simpatiza com sua dor. Mas Dante, apesar da compaixão, não questiona a justiça da condenação. O Inferno não julga com sentimentalismo.
O Canto 13 é outro ápice da descida. Aqui, as almas dos suicidas foram transformadas em árvores retorcidas. Não têm mais corpo, não têm mais forma humana. Quando um galho é quebrado, a árvore sangra e fala. O castigo é terrível e belo. Dante percebe que a perda do corpo é a perda da identidade. O suicida morre e, como castigo, apaga-se.
É mesmo fascinante, um espetáculo absoluto. Descrição incomparável do horror com minúcia. A vastidão do abismo, a podridão das almas, a violência das punições. O Canto 28, com os semeadores da discórdia mutilados, é de uma brutalidade impressionante. Corpos dilacerados, entranhas expostas, gritos incessantes. O horror tem um peso visual inescapável.
O prazer secreto de observar o castigo alheio é uma das razões para o impacto do Inferno. O ser humano sempre foi atraído pela punição dos outros. A história das civilizações está repleta de execuções públicas, tribunais teatrais, espetáculos de condenação. O Inferno de Dante é a versão literária mais perfeita desse impulso ancestral. O leitor sofre, mas como um Fortunato machadiano, do conto “A Causa Secreta”, não cessa de observar, reparar, “beber gota a gota” cada um dos dissabores.
O traço mais eloquente da primeira parte talvez seja a ausência de mudança. O movimento, o futuro, o outro dia, não existem, metaforicamente e pragmaticamente, pois, no pacto com o leitor, aquelas imagens são fruto da experiência do poeta, e não de sua imaginação.
No Purgatório, há redenção. No Paraíso, plenitude. O Inferno é repetição, estagnação, a danação transformada em arquitetura. Foi essa a percepção — insólita e perspicaz — do escritor Ademir Luiz, autor do belo romance “Hirudo Medicinalis”, ao identificar, nas engrenagens do seriado mexicano “Chaves”, a maquinaria implacável do castigo eterno. Sim, “Chaves”. O menino da vila, aquele que mora num barril.
No ensaio “Chaves do Inferno”, publicado na “Revista Bula” com grande repercussão, o professor universitário e doutor em História Medieval realiza uma operação intelectual engenhosa: joga com as chaves — e com “Chaves” — para construir uma leitura que flutua entre a ironia refinada (despercebida de muitos leitores), a paródia erudita e a intuição crítica sobre os produtos da cultura de massa. Há nesse texto de Ademir Luiz uma zombaria elegante dirigida às manias metodológicas das ciências humanas — sobretudo da História e da Linguística —, ao mesmo tempo em que se revela uma rara percepção dos mecanismos narrativos da televisão e de um produto pop.
Seu insight ressoa com a concepção dantesca de um Inferno sistematizado, geométrico, onde o castigo é menos fogo e mais engrenagem. Como Dante, Ademir nos revela um esquema oculto: um Inferno que não precisa de chamas para ser insuportável. Basta a repetição, a estagnação, a ciclotimia eterna. Veja-se: aluguéis que jamais se acumulam, pois o Sr. Madruga deve, invariavelmente, 14 meses ao Sr. Barriga — ainda que os episódios sejam exibidos por décadas. O Sr. Barriga, glutão avarento, paga seus pecados sendo eternamente atingido pelas traquinagens de Chaves, que permanece criança para sempre — e justamente por isso, inescapavelmente travesso. A Bruxa do 71 nunca morre. A bola quadrada do Kiko nunca chega. O romance entre Dona Florinda e o Professor Girafales jamais se consuma: limita-se, infinitamente, a uma xícara de café, fazendo dos dois um reator de luxúria, caldeirão que ferve em lascívia de um desejo jamais consumado, mas sempre alimentado. Todos vestem sempre as mesmas roupas, têm sempre a mesma idade, vivem à mesma hora do dia.
Essa vila é o Inferno dantesco encenado em cores pastéis. Um Inferno de comédia amarga, onde nenhuma travessura é corrigida, nenhum personagem evolui, nenhuma alma se redime. A repetição é o flagelo. A imobilidade, a condenação. É essa a verdadeira retificação da angústia: o mundo onde tudo permanece, o círculo onde nada se transforma. O próprio Dante, ao atravessar os círculos do Inferno, sente-se tomado pelo peso dessa condenação imóvel. Tal como todos que vivem — e revivem — na vila do Chaves.
Outro aspecto da sanha por ordem e sistematização no Inferno está na transposição que o poema faz de tropos e ideias comuns ao ambiente do Direito, da justiça. Lá se torna tribunal, com questionamentos sobre valores políticos, morais, sociais, éticos e pessoais. Dante usa a descida para resolver contas. Põe no abismo inimigos, traidores de Florença, personagens históricos que considera indignos. Nenhum poeta foi tão implacável. Ele se apropria do julgamento divino para exercer seu próprio juízo. O Inferno, na “Comédia”, não é só castigo moral, é acerto de contas.
O círculo final, onde Satanás está preso no gelo, rompe as expectativas. Espera-se um diabo grandioso, um comandante das trevas. Mas Dante nos entrega uma criatura paralisada, imóvel, mastigando eternamente os três grandes traidores. O Inferno máximo não é um lugar de fogo, e sim do gelo da paralisia. Uma forma eloquente de pedir pela mudança, pelo movimento em prol de ser e de tentar ser. Deus sabe que não atingiremos a santidade: Ele quer que tentemos. Essa tentativa, esse movimento humilde e resignado, paciente, em Dante é o anti-Inferno: melhorar é ascender; entregar-se é o mesmo que se condenar.
O que Dante nos diz, com sua arquitetura implacável, é que condenar-se não é queimar, é parar. O Inferno é ausência de movimento. O Paraíso é fluxo, expansão, busca. Deus, onisciente, não espera que alcancemos a santidade. Ele sabe que falharemos. Mas o simples ato de tentar já é um sinal de redenção. Ele nos melhorará a cada dia, ensinará e espalhará, nesse movimento de fazer, uma representação pequena, modesta, de uma ascensão possível, à mão de todo homem, tão carente de pequenos paraísos.
Dante desenha o que seria o anti-Inferno: o esforço de melhorar já é ascensão. O abandono, a rendição ao próprio peso, é o que nos puxa para baixo, para o gelo, para a eternidade sem possibilidade de mudança. O último círculo nos lembra que o pior destino não é o sofrimento ardente, mas a paralisia do ser.
O que Dante fez com o Diabo
Nenhuma outra obra reduziu Satanás à insignificância como a “Divina Comédia”. No último círculo do Inferno, Dante destrói a mitologia do anjo caído como figura grandiosa e rebelde. Não há eloquência, não há discurso, não há luta. Lúcifer não está em guerra contra Deus, está imobilizado, ridículo, grotesco.
O diabo de Dante não governa o Inferno. Ele não é o príncipe das trevas, nem comanda legiões. Ele está fixo no centro, aprisionado no gelo, condenado à absoluta impotência. As três bocas mastigam incessantemente Brutus, Cássio e Judas. Ele não pronuncia palavras, não oferece resistência. É uma máquina repetitiva, um animal enjaulado na própria culpa.
É uma inversão radical da imagem do mal. Em “Paraíso Perdido”, de Milton, Satanás é o herói trágico, o anjo que ousa enfrentar Deus, que desafia a ordem cósmica. Ele discursa, articula, seduz. Seu orgulho o destrói, mas também o engrandece. Não há nada disso em Dante. Aqui, o orgulho não resulta em grandeza, mas em decadência.
“Ao ver sua face, fui petrificado pelo horror”, diz Dante. Mas o horror não vem do poder, e sim da degradação. Satanás não luta, não comanda, não impõe medo. Ele só consome e sofre, num automatismo sem fim.
O Inferno, como estrutura moral, é a consequência de escolhas. Cada condenado moldou sua própria sentença ao longo da vida. O que choca no diabo dantesco não é seu castigo, mas sua absoluta falta de escolha. Ele não age, é um monumento ao erro definitivo.
Esse Satanás glacial e passivo tem ressonância na teologia medieval. O próprio Tomás de Aquino define o mal não como uma entidade ativa, mas como ausência de bem. O Inferno não precisa de um tirano, ele é a anulação do ser. O diabo de Dante é a matéria morta do pecado absoluto.
Curiosamente, a imagem do Satã falante, articulado e rebelde de Milton influenciou muito mais a cultura moderna. O romantismo preferiu um anjo decaído com dimensões heroicas, e até a ficção contemporânea repete essa ideia. Mas Dante não oferece a Satanás nem a glória da tragédia, nem a dignidade da luta.
Essa frieza calculada ecoa em interpretações críticas importantes. Erich Auerbach, em “Mimesis”, aponta que Dante reduz Satanás à sua condição mais essencial: um traidor condenado ao vazio absoluto. O Inferno não é um espetáculo de dor, é uma mecânica da culpa.
O efeito final desse retrato é devastador. O leitor que esperava um grande duelo final encontra apenas uma engrenagem de miséria. O último rosto do Inferno é a inação, a paralisia, o peso do mal sem sentido.
Se Milton faz de Lúcifer um personagem inesquecível, Dante faz dele um fardo. Ele não desafia Deus, ele é um erro encerrado no próprio castigo. E esse é seu verdadeiro horror.
O Purgatório: uma ciência da redenção

O Inferno é irrevogável. O Paraíso é absoluto. O Purgatório é movimento. É o único espaço da “Comédia” onde há tempo, escolha e transformação. No Inferno, as almas estão petrificadas na culpa. No Paraíso, fundem-se em plenitude. No Purgatório, elas mudam, ascendem, tornam-se melhores. É um experimento moral, um processo de lapidação da alma. No Canto 10, Dante vê as almas inclinadas, gravando suas faltas na rocha, reescrevendo suas vidas:
“Ali, ao pé da montanha, achamos gentes, / que estavam na rocha absorvidas, / mais do que a gente às vezes no pensar”. (Purgatório, Canto 10)
Aqui, pensar é purificar-se. O aprendizado é um ato físico.
A lógica do Purgatório é aristotélica. Aristóteles afirma que o conhecimento se dá pelo hábito, pela repetição, pela prática. No Purgatório, não há condenação eterna, há disciplina. Cada alma refaz o caminho que percorreu em erro. O tempo não é castigo, é ferramenta. No Canto 15, Dante vê a harmonia do avanço:
“A luz lá do alto em si mesma ardia, / como fogo na tocha, sem consumo, / de tão perfeita e clara que era a via”. (Purgatório, Canto 15)
A jornada purgatorial é subida. A topografia do poema reflete sua moral.
O Purgatório é um diálogo. No Inferno, a verdade já está dada, os pecadores sofrem, o julgamento é inapelável. No Paraíso, a verdade foi alcançada, mas Dante questiona, reflete, argumenta. Como na tradição escolástica, o aprendizado ocorre no embate de ideias. No Canto 25, ele se surpreende com a natureza das almas purgatoriais e indaga Virgílio:
“Se o calor e o frio alteram nossos corpos, / por que não fazem o mesmo à alma pura?” (Purgatório, Canto 25)
A resposta não é dogma, é um raciocínio, articulado passo a passo. Dante não aceita verdades prontas, ele as testa.
O tempo no Purgatório é fluido, pulsa, ajustando-se ao progresso espiritual. O sol nasce, a noite cai, os penitentes dormem, acordam. No Canto 2, Dante vê a aurora trazendo novas almas à montanha:
“Já vinha a manhã branca e refulgente, / ao lado do oceano resplendia / a claridade ao globo reluzente”. (Purgatório, Canto 2)
A luz marca a passagem do tempo. A purificação ocorre dentro de um ciclo, regulado pelo céu.
A geografia do Purgatório é vertical. O Inferno é um abismo escavado na terra, cada passo leva mais fundo na perdição. O Paraíso é sem gravidade, os santos flutuam na luz. O Purgatório, em contraste, é uma montanha a ser escalada. A subida é literal. O crescimento espiritual tem peso físico, o corpo precisa sofrer para ascender.
O Purgatório também tem seu aspecto de tribunal, de forma diferente do Inferno. No Inferno, a justiça é punitiva e definitiva. No Paraíso, é graça plena. Aqui, há um julgamento contínuo, ajuste de contas onde o erro não é sentença final, mas ponto de partida para a correção. No Canto 19, as almas lamentam sua vaidade e pedem redenção:
“Oh, tardança nossa! Oh, indolência! / que nos deixais a morte tão próxima / antes que nos exijamos quem somos”. (Purgatório, Canto 19)
O remorso é o primeiro degrau da salvação. A consciência da culpa não encerra, mas reabre a possibilidade do bem.
Pela primeira vez na “Comédia”, existe livre-arbítrio. No Inferno, as almas já escolheram seu destino e não podem mudá-lo. No Paraíso, a escolha já se cumpriu. No Purgatório, ainda há decisão. As almas não são arrastadas pela corrente, elas escolhem sofrer para se purificar. No Canto 8, Dante vê esse desejo:
“As sombras desejavam as alturas, / e seu fervor maior era subir, / mais que o desejo nosso por ventura”. (Purgatório, Canto 8)
O desejo humano se alinha ao divino. Mas precisa ser trabalhado, lapidado.
O Purgatório é uma escola. Não basta acreditar, não basta se arrepender, é preciso aprender. Dante investiga a alma como um fenômeno, um experimento de aprimoramento. No Canto 22, Estácio explica a relação entre a graça e o intelecto:
“A natureza inicia a obra humana, / mas, se não recebe a luz divina, / falha ao formar sua última estrutura”. (Purgatório, Canto 22)
A perfeição exige fé e inteligência. Um sem o outro é incompleto.
O Purgatório é uma ciência da alma. No Inferno, Dante examina os pecados em suas consequências. No Purgatório, ele estuda suas origens, seus mecanismos internos, suas soluções. Cada círculo não é só castigo, é um estudo de caso. O Inferno mostra o erro. O Purgatório mostra o caminho de volta.
Dante antecipa o Renascimento no Purgatório. Se o Inferno é uma pintura do pensamento medieval e o Paraíso uma visão da eternidade, o Purgatório já traz a inquietação do mundo moderno. Nele, o homem não é salvo, ele se constrói. No Canto 27, quando Virgílio o deixa, Dante ouve:
“Já não há lei nem regra para ti, / teu arbítrio está são, reto e livre, / e errar seria agora tua culpa”. (Purgatório, Canto 27)
A liberdade agora é o instrumento da salvação. O homem sai do Purgatório responsável por si mesmo.
Dante faz do Purgatório um laboratório da alma, é a ponte. A “Divina Comédia”, se terminasse no Inferno, teria um ethos menor, apesar da beleza. Seria como uma denúncia genialmente composta. Se o poema se encerrasse no Paraíso, seria uma comédia como as outras, que partem do caos para o êxtase das soluções plenas. Mas, como a “Comédia” tem esse belíssimo, profundo e filosófico meio, que de tão rico e belo deixa de ser apenas elo e se torna coluna de sustentação: é no Purgatório que o poema de Dante deixa de ser travessia de um lugar para o outro; é no labor da subida que tudo se justifica. É no seu meio, na segunda parte, no Purgatório, que a “Divina Comédia” ganha status de obra de conhecimento. Dante não escreve apenas para relatar visões místicas ou punições divinas. Ele escreve para ensinar a subir.
Purgatório: o tempo e a transformação
A segunda parte é a mais humana das três. Dante cria um espaço onde a alma não está perdida nem salva, mas em processo. O tempo existe no Purgatório, e o tempo é o que define a vida. A estrutura do Purgatório rompe com a geometria rígida do Inferno. Não há círculos descendentes. Cada pecador, em vez de sofrer uma punição definitiva, aprende a superar sua falha moral. O Inferno petrifica os pecados. O Purgatório os dissolve pela experiência. Castigo se torna método.
O aprendizado no Purgatório se dá na pele. No Inferno, os condenados são passivos, recebem o castigo sem possibilidade de redenção. No Purgatório, os penitentes participam da própria purificação. Os soberbos carregam pesos para aprender a humildade. Os iracundos caminham na fumaça para compreender a serenidade.
O Canto 2 traz um dos momentos mais belos, a chegada das almas à praia do Purgatório. Elas desembarcam num estado de assombro, sem dor e também sem glória. O poeta Casella, amigo de Dante, canta um salmo que enche o ar de doçura. Pela primeira vez no poema, a redenção parece possível. O medo cede lugar à beleza. O Inferno terminava em trevas, mas aqui a luz começa a surgir.
O Canto 10 é um marco da pedagogia moral de Dante. Os soberbos caminham dobrados pelo peso de grandes pedras. A altivez os esmagou em vida; agora, precisam aprender a se curvar. Mas o mais extraordinário não está no castigo, e sim no cenário. Nas paredes da montanha, relatos esculpidos mostram exemplos de humildade. Os penitentes sofrem, veem, aprendem e refletem. O Purgatório é o espaço da educação espiritual.
O Canto 16, no círculo dos iracundos, traz um dos momentos mais filosóficos do poema. Dante, envolto pela fumaça espessa, encontra Marco Lombardo, que discute o problema do livre-arbítrio. Se o Inferno é o domínio do destino já selado e o Paraíso é a plenitude da graça divina, o Purgatório é o território da escolha. Ainda há caminho, ainda há decisão. Dante sugere que a moral não é uma questão de sorte ou condenação prévia, mas de ação e reflexão.
Temos nesses versos a única parte da “Comédia” em que a oração tem poder. No Inferno, nada pode mudar o destino dos condenados. No Paraíso, a perfeição dispensa súplicas. No Purgatório, as orações dos vivos aceleram a ascensão das almas. A relação entre este mundo e o outro não está rompida. O amor ainda atravessa as barreiras do além. A vida e a morte se entrelaçam.
A última etapa do Purgatório é um limiar entre tempo e eternidade. Dante chega ao Paraíso Terrestre, onde encontra Beatriz. Virgílio desaparece. O raciocínio humano, que o guiou até aqui, não basta mais. Beatriz surge como uma figura severa. E Dante, com seus erros. Não há idealização amorosa que prenuncie um romantismo “avant la lettre”. Temos o chamado à maturidade. O aprendizado final exige esforço e aceitação da verdade.
Essa parte também fascina, nela o homem é, de fato, protagonista do próprio destino. No Inferno, as regras já foram ditadas; no Paraíso, já não há esforço. Aqui, cada passo da montanha é conquistado. Não há graça automática, nem condenação inapelável. O que há é luta. Estamos diante do território do possível. Nenhuma parte da obra se assemelha tanto à vida quanto essa. Não somos condenados irrevogavelmente, nem absolvidos. Dante nos mostra que, ainda sendo o caminho árduo, cada passo nos aproxima da luz de Deus ou da edificação de virtudes, como queiram.
Paraíso: quando a literatura flerta com a revelação divina
O Paraíso é o grande mal-entendido da “Divina Comédia”. O Inferno atrai, o Purgatório comove, mas o Paraíso… O que se faz com ele? O leitor moderno teme sua pureza. Tememos o absoluto. Achamos que será monótono, repetitivo, que as almas bem-aventuradas não terão nada a nos dizer. Mas quem ousa cruzar os primeiros versos, quem persiste na travessia, descobre o canto mais belo já escrito pela mão humana.
Dante não descreve a perfeição como um repouso. O Paraíso vibra, pulsa, se move. O Inferno é rigidez, congelamento, ausência de transformação. Aqui, tudo é luz em deslocamento. Os beatos giram, dançam em círculos concêntricos, a música ressoa em todas as esferas. Não há peso, não há dor. Há um esplendor que cresce, se expande, nos arrasta para uma experiência que não é apenas leitura, mas êxtase.
Como se descreve Deus sem reduzi-Lo a palavras? Dante sabe que a linguagem falha. O que resta é um esforço de aproximação, uma coreografia verbal que tenta dizer o indizível. A cada canto, os elementos se refinam, os conceitos se afunilam. Ele parte da física, da metafísica, atravessa a teologia, o misticismo, a geometria. Deus não é figura nem símbolo, é luz e amor que movem tudo.
O Paraíso não é estático porque a eternidade não é passividade. A concepção medieval de beatitude não é um céu de nuvens onde almas entoam cânticos sem emoção. Aqui, tudo se move com perfeição matemática, porque a perfeição é movimento absoluto. Não há dúvida, hesitação ou crise. O entendimento se dá na velocidade da luz. Dante vê, compreende, é absorvido pelo ritmo da ordem divina.
O Paraíso fascina porque não oferece um espetáculo de dor, mas de plenitude. O leitor que se acostumou à brutalidade do Inferno sente um estranhamento diante da beleza pura. Mas é preciso mudar o olhar. Aqui, a grandeza está na harmonia, na luz que se entrelaça, nas revelações que se acumulam. O espírito não precisa ser golpeado pelo horror, ele é levado pela glória.
O Canto 33 é o auge da experiência. Beatriz já não é guia. São Bernardo assume o papel, pois só um místico poderia conduzir Dante na reta final. Mas não há mais palavras que bastem. Tudo se dissolve na última visão, no instante em que o poeta encara o centro do universo.
“Ó luz eterna que em ti só repousa…” Dante vê Deus. Mas como narrar essa visão? Ele não tenta explicá-la, ele a canta. O poema inteiro preparou o leitor para esse momento. A mente humana não pode compreender Deus, mas pode ser tomada por Sua presença. O que Dante faz nos versos finais não é dizer o que viu, mas nos levar à beira do abismo dessa experiência.
O último terceto é a consumação de tudo. “Mas já minha vista e o meu querer estavam, / assim como a roda em seu girar, levados / pelo Amor que move o Sol e as outras estrelas.” O que resta é amor. Não há mais dúvidas, questionamentos, ambições. Só há um centro, uma força que rege tudo, que faz o universo girar. A “Divina Comédia” se fecha como um círculo perfeito.
O encerramento do poema é um evento literário insuperável. Nenhum outro texto conseguiu traduzir com tamanha precisão a experiência do divino. Dante não inventa uma alegoria, ele nos leva até a borda da visão mística e nos abandona ali, tomados pela mesma vertigem.
O leitor que chega até aqui compreende por que o Inferno foi apenas um degrau. As sombras do início serviam para que a luz final tivesse seu esplendor. Dante não escreveu para que nos detivéssemos no horror, mas para que víssemos o que há além dele.
O Paraíso é a leitura mais difícil, mas também a mais recompensadora. Cada página exige entrega total. O Inferno pode ser lido com distância, mas o Paraíso exige rendição. O leitor que se permite atravessá-lo não encontra apenas versos, encontra o absoluto.
A “Divina Comédia” termina no ponto máximo da poesia ocidental. O que vem depois, todo o cânone que se seguiu, toda a modernidade, toda a literatura que tenta entender o homem e o cosmos, parte desse momento. Tudo se move pelo amor que move o Sol e as estrelas. E por isso Dante nunca termina.
Quem lê a última linha não encerra uma leitura, começa uma nova vida.
A revolução de Dante

Antes de Dante, a literatura era uma experiência coletiva. O destino humano era contado na pluralidade dos mitos, das epopeias e dos feitos heroicos. A “Ilíada” não pertence a Aquiles, mas à sua cólera. A “Odisseia” não pertence a Odisseu, mas à sua astúcia. O eu do poeta era, no máximo, um artífice invisível, um narrador que tecia as glórias dos outros. Dante inverte essa lógica: ele coloca a si mesmo no centro do poema, inaugurando um modelo que moldará a literatura.
Não se trata apenas de um gesto de ousadia estética. Ao fazer de si o protagonista de uma jornada espiritual, Dante cristaliza o conceito cristão de individualidade. A salvação já não se dá no interior da pólis, na guerra ou na epopeia coletiva, como na Antiguidade. Cada alma responde por si mesma. Cada destino é único, irrepetível, e o homem se torna responsável pela sua redenção. Não há mais uma sociedade que decide por todos. Há um sujeito que se debate, que erra, que precisa entender qual é seu lugar no cosmos.
O impacto dessa transformação ecoa além da literatura. Se cada um é o autor da própria salvação, cada um também é o autor da própria vida. A subjetividade nasce como um problema, mas também como uma promessa: o indivíduo é capaz de transcender sua condição. A semente do humanismo está aqui, na “Comédia”, antes mesmo do Renascimento. Sem Dante, não há Montaigne, não há Descartes, não há Goethe, não há Kafka, muito menos Proust, o eu mais falante da história, que fala por três mil páginas sobre si e sua jornada no tempo.
Cogito, ergo sum. Quando Descartes escreve sua máxima, ele o faz em um mundo já transformado pela literatura introspectiva. O pensamento cartesiano de que a existência se funda na autoconsciência seria impensável sem essa revolução literária. Dante não precisa demonstrar que existe: ele escreve, e sua escrita é sua prova de existência. O próprio poema é seu ato de afirmação, sua permanência no mundo.
E há algo ainda mais audacioso: Dante não escreve apenas sobre si, mas transforma sua experiência em paradigma. O que ele sente, vê e teme, nós sentimos, vemos e tememos com ele. Ele não impõe apenas sua trajetória pessoal, ele a universaliza, tornando-a um modelo da condição humana. Ao longo do tempo, a literatura se apropriará dessa fórmula e a expandirá. Proust eterniza sua memória. Joyce dissolve sua psique na linguagem. Borges se perde em labirintos de si mesmo. Mas foi Dante quem primeiro deu esse salto.
Na política e na economia, essa transformação não é menos radical. Se o destino de cada um está em suas mãos, então também sua ascensão, seu fracasso e seu êxito são méritos próprios. A “Comédia” antecipa, sem saber, o individualismo da modernidade, que desembocará no capitalismo e na ideia de mobilidade social baseada no esforço e no talento pessoal. Se Dante consegue atravessar os três reinos do além porque aprende e se transforma, então a ideia de progresso individual está selada.
Mas há um limite. Dante, ao contrário do homem moderno, não se basta. Ele precisa de um guia, precisa de mestres, precisa da Graça. Seu individualismo não é absoluto, pois ainda se inscreve numa ordem cósmica, num universo onde o homem não se salva sozinho. Essa tensão entre autonomia e dependência será o drama fundamental da modernidade. O que começa como libertação se tornará angústia. Se Dante olha para o além e encontra Deus, o moderno olhará e encontrará apenas o vazio.
Os estudiosos que analisam a relação entre Dante e o pensamento moderno veem nele tanto um precursor quanto uma ruptura. Giuseppe Mazzotta aponta que a “Comédia” é “um ponto de virada na concepção do eu e de sua relação com o mundo”. Para Auerbach, Dante “não apenas introduz a psicologia na literatura, mas faz dela um problema central”, algo que se desdobrará na ficção europeia dos séculos seguintes.
Dante nos ensina que a literatura não precisa ser um espelho do mundo, mas um espelho da alma. Ele não descreve apenas o que vê; ele descreve a maneira como vê, como Proust faz, mostrando o quanto aprendeu certas lições. Essa consciência do olhar, essa transformação do mundo em experiência subjetiva, será o grande motor da literatura do século 20. Em Borges, tudo será um jogo de reflexos. Em Woolf, tudo será percepção. Dante foi o primeiro a intuir que escrever é existir.
No fim, a “Comédia” não é um poema sobre um homem que se perde e se reencontra. É um poema sobre a invenção do eu, sobre como a escrita se torna a única resposta possível ao mundo. Dante não é apenas um poeta medieval. Ele é o primeiro moderno e, talvez, o mais eterno de todos.
Dante no Brasil: uma presença fantasmática
Dante nunca pisou no Brasil, sequer soube que ele existia, e de fato, para o seu mundo, ele não existia mesmo. Mas sua sombra paira sobre nossa literatura. O nome “Divina Comédia” ecoa nos cursos de Letras, suas imagens infernais povoam as ilustrações escolares, e seu nome aparece com reverência em ensaios literários. No entanto, quantos realmente leram Dante? Seu impacto por aqui é mais um rumor do que uma presença viva. E isso tem razões históricas e editoriais.
A “Comédia” chega ao Brasil de forma fragmentada. Desde os tempos coloniais, a cultura literária brasileira se pautou muito mais pela França do que pela Itália. Camões era um nome familiar; Dante, um mito longínquo. Foi apenas no século 19, com o Romantismo e o Simbolismo, que se iniciou uma recepção mais interessada, ainda assim tímida.
As primeiras traduções brasileiras reforçaram essa recepção desigual. O pioneiro Xavier Pinheiro, em 1907, optou por um tom formal e grave, em versos decassílabos. Sua tradução, embora respeitável, retirou de Dante parte de sua musicalidade e impacto dramático. Muitos leitores sentiram-no mais como um poeta estático do que como a voz profética que ecoa pelos séculos.
Foi apenas na segunda metade do século 20 que começaram a surgir traduções que tentavam captar a vitalidade do texto original. Haroldo de Campos e Jorge Wanderley buscaram restaurar o Dante vibrante, sonoro, cuja poesia pulsa em ritmo e emoção. Suas versões não são meras recriações formais; são tentativas de dar ao português um Dante mais próximo do original italiano.
O problema da recepção persiste. Lê-se muito o Inferno e pouco o Paraíso. A cultura popular se apropriou das imagens infernais, das condenações, dos castigos espetaculares. Mas o Paraíso, repleto de contemplação e êxtase místico, não encontrou muitos leitores. O próprio Haroldo de Campos lamentou essa disparidade: “Dante é lido como espetáculo, quando deveria ser lido como revelação”.
E Dante na literatura brasileira? Aqui ele age como uma presença subterrânea. Jorge de Lima, no colossal “Invenção de Orfeu”, bebe diretamente da estrutura dantesca. Cecília Meireles, em “Romanceiro da Inconfidência”, evoca a métrica e o tom de jornada moral que ressoa na “Comédia”. João Cabral de Melo Neto, obcecado pelo rigor formal, admirava Dante como um poeta que dominava a forma sem perder a alma.
Machado de Assis cita Dante de passagem em alguns ensaios, mas não há nele uma adesão mais profunda. Quem realmente dialoga com Dante no Brasil? Em grande medida, os poetas — aqueles que entenderam a “Comédia” como a grande estrutura do imaginário ocidental. Mas o romancista brasileiro, sempre voltado para o realismo ou regionalismo, quase sempre e tristemente ideológico, teve pouco interesse por sua vertigem simbólica.
E nas editoras? A fortuna editorial de Dante no Brasil reflete esse descompasso. Apesar das traduções recentes, ele não se tornou um autor de leitura obrigatória, como Shakespeare ou Cervantes. É um nome sagrado, mas raramente um companheiro de cabeceira. A circulação ainda é restrita ao meio acadêmico ou leitores muito especializados, àqueles que têm laços com a Itália, como acontece na cidade de São Paulo.
Se Dante não encontrou no Brasil uma recepção massiva, sua força simbólica continua a irradiar. Seus círculos infernais aparecem em peças teatrais, suas imagens inspiram pintores e cineastas. Até mesmo as metáforas dantescas — como a da travessia e da ascensão — se tornaram expressões de um imaginário literário que, mesmo sem ler Dante, se inspira nele.
O que falta, então? Dante precisa ser trazido ao Brasil como experiência viva, não como relíquia de museu. Suas traduções precisam ser relidas, sua poesia precisa ser recitada, sua jornada precisa ser revivida como um dos grandes gestos da humanidade. Pois não há nada mais universal que um homem atravessando a escuridão para encontrar a luz.
Por que devemos ler “A Divina Comédia” hoje?
Porque ler Dante não é apenas um exercício literário, é uma ampliação da alma. Ao mergulhar na “Comédia”, o leitor não recebe uma história pronta, nem um entretenimento fugaz. O que Dante oferece é uma cartografia do pensamento humano, um exercício contínuo de simbolização e descoberta. Ele força a mente a trabalhar, a ver metáforas onde antes havia apenas o óbvio, a enxergar padrões ocultos no real.
A “Divina Comédia” é o maior atestado de que a ousadia e a liberdade são as verdadeiras forças criativas. Dante não seguiu modelos, mas inventou um. Criou um poema que se desloca entre filosofia, religião, política e poesia sem medo de fracassar. Ele escreve como se tudo lhe fosse permitido. E, ao fazê-lo, ensina que o pensamento só avança quando desafia o que é dado como certo, quando arrisca, quando sonha sem amarras.
O poema contém tudo. Nenhuma obra literária reúne em si tantas dimensões: teologia e ética, mitologia e política, lirismo e rigor filosófico. Ele é, ao mesmo tempo, um livro sagrado e um acerto de contas pessoal, um tratado metafísico e uma história de vingança, uma oração e uma fábula. Cada verso ecoa em camadas sobrepostas, em significados que se desdobram infinitamente.
A experiência de ler Dante altera nossa própria linguagem. O poder metafórico do poema é levado ao extremo. Cada cena, cada paisagem, cada diálogo eleva a imaginação ao seu grau mais alto. O leitor, ao passar por esse treinamento, torna-se mais exigente com as palavras que escolhe e com as histórias que aceita ouvir. A “Comédia” expande nossa cognição, refina nossa expressão, nos obriga a sermos mais claros e mais profundos.
Ler Dante é viver uma época da vida. Sua leitura não se esgota em poucos dias. Ela exige tempo, exige paciência, exige idas constantes à enciclopédia, ao dicionário, aos textos paralelos. Quem lê Dante não apenas lê, atravessa um período de imersão, uma experiência que, anos depois, será lembrada como um acontecimento pessoal. E é nesse tempo, nesse envolvimento, que se revela a maior lição da “Comédia”: não é só registro, ela é invenção, é memória, é identidade.
O livro nos ensina os limites da inteligência humana. Quanto mais avançamos, mais percebemos nossa pequenez. Dante dialoga com Platão, com Aristóteles, com Santo Agostinho, mas também com seu próprio erro, sua dúvida, seu orgulho. Ao lê-lo, o leitor se torna mais rigoroso consigo, mais atento à fragilidade do próprio pensamento. Mas, ao mesmo tempo, mais generoso, pois compreende que errar, aprender e se purificar são processos que não pertencem apenas aos personagens do poema, mas a todos nós.
A “Comédia” nos dá o único otimismo inteligente da história humana. O Inferno nos mostra a dor que nasce da ausência de amor. O Purgatório nos ensina que há tempo para se tornar melhor. O Paraíso nos dá a imagem mais bela da plenitude. Esse é o otimismo que não nega a realidade, mas que a enfrenta e a transforma. Não se trata de um consolo infantil, mas de uma esperança construída na inteligência.
O livro nos ensina que toda a felicidade verdadeira está ligada à ideia de absoluto. Dante nos conduz ao final da jornada como um guia, mas o último passo cabe ao leitor. Quem chega ao último canto do Paraíso compreende que a vida não se resume ao imediato, ao que é palpável. Existe algo que se move acima de nós — seja uma verdade filosófica, um sentido moral, um mistério que nos ultrapassa.
A leitura da “Divina Comédia” não se encerra quando fechamos o livro. Ela continua, nos acompanha, ressurge em pensamentos, em referências, em símbolos que nos assombram sem que percebamos. Seu impacto não se mede pelo tempo de leitura, mas pelo que transforma no leitor. Dante não passa. Ele permanece.
Ler Dante hoje é um gesto de resistência. Num mundo onde o pensamento é rápido, onde as palavras são consumidas sem pausa, mergulhar nele é um ato de inteligência e coragem. É um convite para pensar mais, para falar melhor, para se tornar mais humano. E esse é o verdadeiro sentido da travessia.
Últimos versos da “Comédia”: o amor que move o Sol e as estrelas
Se o Inferno nos fascina pelo horror e pela justiça implacável, o Purgatório nos toca pelo esforço e pela redenção, é no Paraíso que Dante alcança o ápice, ele se dissolve na própria visão. Os versos finais não são conclusão, são transcendência. O poeta não descreve, ele se funde à luz celestial. É a cena mais audaciosa da literatura: um homem vê Deus e tenta transformar essa visão em palavra.
Os últimos cinco tercetos do poema são um testamento daquilo que está além da linguagem. Com rigor matemático e emoção mística, Dante estrutura um final que não é apenas o fim de um poema, mas o fim da própria experiência humana. O homem chegou ao limite do conhecimento. Diante disso, resta apenas o abandono à luz absoluta.
Os últimos versos da “Divina Comédia”

“Ó luz eterna que em ti só repousa,
por ti só entendida e conhecendo a si mesma,
e por ti compreendida e sorrindo!
Aquele giro, que assim vai girando,
pareceu-me conter, em seu ardor,
a minha imagem, em sua luz pintada.
E como o geômetra que todo absorto
busca medir o círculo e não encontra,
por mais que o pensamento investigue,
assim me vi diante dessa visão nova.
Queria ver como a figura cabia
dentro do círculo e onde se encaixava,
Mas já a minha vista e o meu querer estavam,
assim como a roda em seu girar, levados
pelo Amor que move o Sol e as outras estrelas.”
O primeiro desses cinco tercetos é um louvor absoluto à luz divina. Dante incorpora o pensamento de Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino em um só verso. Aqui está o conceito máximo da metafísica medieval: Deus não precisa de nada externo, pois é a própria inteligência que se compreende e se basta.
A estrutura gramatical reforça essa ideia. Os verbos reflexivos (“por ti só entendida”, “por ti compreendida”) mostram uma divindade que não reflete nada além de si mesma. Não há antes, não há depois. Há apenas a eternidade absoluta. Como dizia Tomás de Aquino, Deus é puro ato, a causa e o efeito de si mesmo.
No segundo terceto, Dante vê a si mesmo na luz divina. Mas não se trata de uma visão egocêntrica, é a percepção de que o homem carrega o reflexo da eternidade em si. A imagem humana dentro da luz sagrada confirma aquilo que o Gênesis diz: “O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus”.
Mas há uma barreira. Dante vê, mas não compreende. A cena reflete a teologia de Santo Agostinho, que afirmava que o homem não se entende plenamente até contemplar sua origem no Criador. Esse dilema é traduzido pelo terceiro terceto, onde Dante recorre à matemática para expressar sua limitação:
“E como o geômetra que todo absorto
busca medir o círculo e não encontra,
por mais que o pensamento investigue”.
O círculo é a forma perfeita. Representa Deus, sem início, sem fim, sem falha. Como um euclidiano medieval, Dante tenta medir o mistério com a razão, mas o cálculo falha, proustianamente, nosso cristão amado, que nos clama e faz chorar quando a ele se lê ou sobre ele se escreve, recusa a inteligência, sem abandoná-la. O homem pode construir catedrais, pode mapear os astros, pode criar sistemas teológicos perfeitos, mas há um ponto em que a mente não alcança mais. Apenas o espírito pode atravessar essa fronteira.
O quarto terceto leva essa tensão ao extremo. Dante quer entender como a figura humana se encaixa na eternidade. Ele busca, mas não há resposta lógica. O maior poeta do Ocidente admite seu limite. Como diz Borges, “Dante quis ver a mente de Deus e soube que não poderia”.
Mas então, algo acontece. O raciocínio se dissolve. A busca cessa. O poeta se abandona. Ele não precisa mais entender, ele apenas é levado. O último terceto do poema são os versos mais sublimes da história da literatura:
“Mas já a minha vista e o meu querer estavam,
assim como a roda em seu girar, levados
pelo Amor que move o Sol e as outras estrelas”.
Dante encerra a “Divina Comédia” com a palavra “Amor”. Não com “Deus”, não com “Glória”, não com “Verdade”. Mas com Amor.
Esse é o maior ensinamento do poema. Deus não é apenas poder, justiça ou luz — Ele é Amor. O Amor é o eixo que sustenta os astros, que move os oceanos, que conduz o destino humano. O Amor é a origem e o destino do universo. A grande visão final não é um dogma, é um êxtase.
O Paraíso de Dante não é um lugar, é um estado. A jornada do poeta se conclui não com um dogma fechado, mas com uma experiência aberta. O homem chega onde pode chegar. O resto é entrega.
Escreveu Umberto Eco: “Dante encerra a Idade Média, mas abre todas as possibilidades para o futuro”. Seu poema não é um testamento de um tempo que termina, mas uma ponte para a eternidade.
Dante compreendeu, antes de Tolstói, que só o amor pode dar sentido ao mundo. Entendeu, antes de Mann, que a poesia pode conter a totalidade da experiência humana. Intuiu, antes de Borges, que a literatura é o único espelho onde o homem pode ver seu reflexo sem distorções.
A “Divina Comédia” é um cosmos. Um livro que contém todos os livros. Um código secreto que nunca se esgota.
No final, o leitor que atravessou o Inferno e escalou o Purgatório chega ao grande presente de Dante. A chance de ver o universo com outros olhos. A chance de, por um instante, ver a eternidade.
O Inferno é fascinante. O Purgatório é comovente. Mas é o Paraíso que dá sentido a tudo. Quem abandona o poema antes do final perde o maior êxtase da literatura.
A viagem de Dante termina. A nossa, não. Porque depois de ler a “Divina Comédia”, não se é mais o mesmo.
O Amor que move o Sol e as estrelas também move aquele que lê.
Agora, é sua vez de ver o Paraíso.
“Epílogo”: um encontro no fim do caminho

A última aula sobre Dante na Hebraica, em São Paulo. Os seminários foram apresentados, as discussões encerradas, os alunos dispersos pelo corredor, comentando as interpretações, rindo de suas próprias dificuldades com os versos dantescos. A sala começa a esvaziar. Eu fecho um dos livros, recolho algumas anotações. E então percebo: um aluno judeu ficou.
Ele está parado perto da porta, indeciso. Um dos mais reservados da turma, quase nunca falou durante as aulas. Nunca se interessou por literatura. O nome dele é Eitan. Judeu, criado numa família rigorosa, sempre viu Dante com certa distância, como uma peça de um mundo que não era o seu. Vocação para a Engenharia, herdaria coisas para cuidar. Mas ele espera. Quer dizer algo.
Ele se aproxima e fala sem preâmbulos: “Moreh (mestre em hebraico, como os professores são chamados em escolas judaicas), eu nunca gostei de literatura.” A frase é seca, direta, mas algo mudou no tom. Há um peso ali, uma confissão. Ele não gostava. Mas agora…?
“Dante fala sobre o cristianismo”, ele continua. “Sempre achei que isso fosse uma barreira para mim. Mas enquanto lia, percebi que o que ele diz não é só sobre fé, é sobre o ser humano. Eu passei a ver o poema de outro jeito. Como algo que me dizia respeito. Como se não fosse um poeta cristão falando comigo, mas apenas… um homem.”
Ele pausa. E então, mais baixo, como se estivesse admitindo para si mesmo: “E foi por isso que eu comecei a escrever”.
Fico em silêncio por um instante, mas a comoção me tomou. Não há alegria espalhafatosa nessa cena. Não há aplausos nem música épica. Só há um professor e um aluno diante de um momento definitivo.
“O que você escreveu?” pergunto.
Ele hesita, mas depois sorri de leve, ainda sem jeito. “Não sei bem. Pequenas coisas. Ideias que vinham enquanto eu lia. Algumas frases. Um verso que tentei imitar.” Olha para mim e diz, com um misto de timidez e convicção: “Nunca pensei que isso pudesse acontecer”.
Eu sorrio. Não porque esse aluno um dia será um grande escritor, ou porque se tornará um leitor voraz. Sorrio porque ele compreendeu. Compreendeu que a literatura não tem muros, que um poema escrito há setecentos anos por um florentino exilado pode atravessar o tempo, romper religiões, desmanchar barreiras culturais. Compreendeu que Dante não é cristão ou medieval ou europeu. Dante é humano.
Ele agradece, pega a mochila e vai embora. E eu fico ali, por um instante, antes de sair também. Porque o verdadeiro prêmio pra mim nunca foram os artigos publicados, os convites para palestras ou os reconhecimentos acadêmicos. O verdadeiro prêmio sempre foi este: ver alguém, pela primeira vez, descobrir que a literatura muda a vida.