Há filmes que conseguem se equilibrar entre as fórmulas conhecidas e um certo grau de autenticidade que os torna memoráveis. “Beijos que Matam”, lançado em meio à enxurrada de thrillers psicológicos da virada dos anos 1990 para os 2000, caminha por esse terreno ambíguo. Não reinventa a roda, tampouco se rende inteiramente aos automatismos do suspense policial. Sua maior qualidade é operar numa zona de tensão entre o funcional e o incômodo, o previsível e o estranho. E se, por vezes, hesita diante das próprias escolhas narrativas, o faz com personagens suficientemente interessantes para manter a pulsação da história viva.
Adaptado do romance de James Patterson, o enredo propõe uma distorção perturbadora das dinâmicas de poder e desejo: um criminoso que não apenas escolhe suas vítimas por atributos incomuns — força, inteligência, autocontrole —, mas que as mantêm como troféus vivos em câmaras subterrâneas. Essa lógica de sequestro invertido, onde o prazer está mais na contenção do que na destruição, configura uma perversidade silenciosa, que se alimenta do domínio prolongado, não do impulso homicida. O serial killer apelidado de Casanova incorpora mais do que a figura do predador típico: ele representa uma espécie de esteta da crueldade, um arquiteto da submissão voluntária.
A direção de Gary Fleder busca traduzir esse mal-estar em termos visuais: florestas úmidas e claustrofóbicas, iluminação opaca, interiores fechados e sufocantes. O resultado é um ambiente que sussurra perigo em vez de bradar violência. Ainda assim, a estética bem calibrada não esconde completamente as fragilidades da estrutura narrativa. Há subtramas que parecem iniciar com fôlego e desaparecem antes de amadurecer. Há decisões de roteiro que recorrem mais ao conveniente do que ao coerente. E, sobretudo, há uma oscilação incômoda entre o desejo de provocar inquietação e a escolha por atalhos que reduzem essa ambição.
Em meio a essa arquitetura instável, é nos protagonistas que o filme encontra sua verdadeira âncora. Morgan Freeman, como o psicólogo forense Alex Cross, é um corpo em permanente escuta. Seu desempenho se constrói não por meio de frases de efeito, mas pelo olhar que pesa, pela pausa antes da resposta, pela cadência da voz que raramente se altera. Ele não interpreta a genialidade: ele a observa. Ashley Judd, por sua vez, oferece à doutora Kate McTiernan uma dimensão que vai além da sobrevivência. Ela não apenas resiste, ela responde. Sua atuação recusa a fragilidade esperada da vítima e transita para uma força ativa, que se impõe com precisão, sem jamais soar artificial.
Há entre Cross e McTiernan uma química que não depende de romance ou tensão sexual. O que pulsa ali é um respeito mútuo pela capacidade intelectual e pela dor compartilhada. Os diálogos entre ambos são construídos como choques silenciosos: nenhuma fala se pretende espetacular, mas todas carregam um peso que ultrapassa o literal. Esse cuidado no desenvolvimento da dupla principal é o que sustenta os momentos em que o roteiro se dispersa ou se rende ao lugar-comum.
Na construção do antagonista, o filme opera uma torção que evita o clichê do assassino descontrolado. Casanova é metódico, frio, quase impessoal. Sua violência é medida, sua lógica é perversa na exatidão. A ideia de aprisionar mulheres como se fossem obras de arte — não a serem destruídas, mas contempladas — aproxima o assassino mais do colecionador do que do carniceiro. E é justamente aí que o filme poderia ter aprofundado sua proposta: há implicações psicológicas e sociais nessa dinâmica que o roteiro apenas arranha, preferindo avançar para resoluções práticas que, embora eficazes em termos de ritmo, empobrecem o potencial reflexivo da narrativa.
Há também sugestões de uma rede mais complexa — possíveis cúmplices, um imitador em outra cidade, ramificações não exploradas — que são insinuadas e abandonadas com rapidez. Esse abandono narrativo parece refletir uma indecisão criativa: o filme quer tocar em temas maiores, mas recua quando percebe que isso exigiria uma estrutura mais robusta e menos comprometida com a fórmula. Ainda assim, essas lacunas provocam o espectador atento, que intui ali um filme que poderia ter sido mais ambicioso se tivesse aceitado o risco da densidade.
As comparações com “Seven — Os Sete Crimes Capitais” são inevitáveis, não apenas pela presença de Morgan Freeman em ambos os filmes, mas pela tentativa de construir um suspense que insinua um mal quase metafísico, não apenas criminal. Porém, enquanto “Seven” se estrutura como um tratado sombrio sobre decadência moral, “Beijos que Matam” prefere se manter nos domínios mais seguros do mistério resolvível, do inimigo identificável, da ameaça localizada. É um thriller com os pés no chão, ainda que por vezes olhe para cima, como se desejasse alcançar algo maior.
O elenco de apoio — com nomes como Cary Elwes, Brian Cox e Jeremy Piven — cumpre bem seu papel, compondo um universo que não exige grande suspensão de descrença. Mas são Freeman e Judd que verdadeiramente carregam o filme, não apenas por talento, mas por uma entrega que ultrapassa o texto. Há uma generosidade em cena, uma disposição para fazer cada momento contar, mesmo quando o roteiro oferece pouco mais do que funcionalidade.
No fim, o que resta é uma sensação de promessa parcialmente cumprida. “Beijos que Matam” é um thriller que entende o jogo, conhece suas regras e sabe jogá-las bem o suficiente para manter o espectador interessado. Mas havia ali material para algo mais arriscado — mais escuro, mais incômodo, mais inesquecível. Se tivesse ousado explorar as zonas mais obscuras de seus personagens, ou mergulhado nas contradições morais que sugere, talvez tivesse deixado de ser apenas eficiente para se tornar verdadeiramente perturbador. Ainda assim, é um filme que, mesmo limitado por suas próprias escolhas, pulsa com momentos de inteligência e tensão autênticas — o suficiente para manter viva a dúvida: e se tivesse ido mais fundo?
★★★★★★★★★★