A melhor estreia da Netflix em abril de 2025, até agora Divulgação / Hulu

A melhor estreia da Netflix em abril de 2025, até agora

Num universo em que os protocolos encobrem afetos e os gestos cotidianos são coreografados por códigos de classe, o que se desvenda não é meramente um romance interditado, mas o surgimento de uma consciência que se insurge contra a previsibilidade social. Jane Fairchild, jovem empregada doméstica em uma Inglaterra aristocrática do pós-guerra, não circula apenas por corredores silenciosos: ela cruza limites simbólicos entre mundos que nunca se reconheceram mutuamente. Sua figura, inicialmente apagada na hierarquia das casas grandes, esboça, aos poucos, uma rebelião silenciosa — não contra pessoas, mas contra estruturas de invisibilidade.

No interior da residência dos Niven, onde a dor é polida como o mobiliário e a tristeza se traduz em protocolos de etiqueta, Jane inicia um processo de apropriação sensível do mundo ao seu redor. Não é o luto dos patrões que a define, mas a capacidade singular de convertê-lo em material sensorial e intelectual. O que para os outros é apenas um domingo ensolarado de primavera — e, ironicamente, o Dia das Mães — transforma-se para ela em instante inaugural, um tempo em suspensão onde paixão e lucidez colidem. Mais que amante de Paul Sheringham, Jane é uma decifradora da realidade, uma testemunha que transforma os restos do indizível em linguagem.

Eva Husson, ao filmar essa travessia, recusa o encantamento usual com a pompa de época. Sua câmera recorta os instantes em que a respiração se torna política: o olhar que hesita, o toque interrompido, a nudez que não seduz, mas interroga. A biblioteca de Paul, onde Jane caminha despida, não é um cenário de provocação, e sim o espaço simbólico onde o corpo feminino se inscreve como texto. Ali, ela não apenas transita entre estantes — ela adentra, pela primeira vez, o território da autoria. A carne, que sempre fora domesticada, torna-se linguagem. E é nesse deslocamento da servidão para a enunciação que o filme encontra sua força mais pungente.

O roteiro de Alice Birch opera como uma memória que se reconstrói por tentativa e lapso. Não há linearidade complacente, mas sim uma orquestração emocional que alterna juventude, maturidade e velhice como quem gira um caleidoscópio. Os fragmentos temporais não apenas compõem o retrato de uma vida — eles espelham o modo como o pensamento literário funciona: feito de associações, lacunas e intuições. Ao recentrar a história em uma figura socialmente apagada, Birch não propõe apenas um gesto narrativo, mas uma intervenção ética. Jane não é exceção à regra: ela é a interrupção da regra.

Nesse panorama, Paul representa a promessa trágica de um mundo prestes a desmoronar, enquanto Donald, parceiro futuro de Jane, personifica o vínculo que se funda não na posse, mas na reciprocidade. A narrativa não romantiza a paixão fulminante; ela a contrapõe ao amor que se constrói com escuta e pensamento. O elo entre Jane e Donald é feito de cumplicidade intelectual — um tipo de intimidade que resiste ao tempo e à estrutura social. A transição entre esses dois homens não ilustra uma preferência afetiva, mas revela a transformação interna de uma mulher que, enfim, encontra espaço para existir fora das expectativas alheias.

Na maturidade, Jane não apenas escreve — ela reescreve. A presença de Glenda Jackson, no papel de uma autora consagrada nos últimos dias de vida, não é uma homenagem tardia: é o retrato da persistência que triunfa sobre o silenciamento. A frase final, que relativiza o brilho dos prêmios frente à conquista de uma trilha própria, não pretende oferecer consolo, mas afirmar uma escolha: viver não como repetição de papéis herdados, mas como criação contínua de significado. Ainda que a conclusão seja breve, ela concentra em si a densidade de uma existência transfigurada em narrativa.

O filme rejeita com firmeza o apelo à nostalgia. Nada ali deseja reencenar os salões dourados da aristocracia nem fetichizar a estética da servidão. A beleza proposta é outra: nasce dos gestos de subversão mínima — uma porta atravessada sem permissão, um livro aberto por mãos inesperadas, um corpo que se recusa a desaparecer. Jane não rompe com a ordem por fúria, mas por lucidez. Sua potência não está no escândalo, mas na linguagem. Se existe revolução, ela se dá na estrutura do olhar: na recusa de que certas histórias sejam sempre contadas do mesmo ponto de vista.

Assim, o que se inicia como uma narrativa de perda e desejo, desdobra-se como meditação profunda sobre autoria, pertencimento e escrita como ato de insurgência. Jane Fairchild, longe de ser moldada pelas circunstâncias, encontra um modo de reinventá-las a partir da palavra. O tempo, para ela, deixa de ser linha reta e torna-se espiral: não é sobre o que se perdeu, mas sobre o que se pôde transformar. E nesse gesto, mais do que viver, ela aprende a deixar vestígios — não como memória melancólica, mas como afirmação indelével de presença.

Filme: O Domingo das Mães
Diretor: Eva Husson
Ano: 2021
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★