O Brasil parou naquele 28 de julho de 1938. Depois de setenta anos, o governo brasileiro conseguia, afinal, dar fim a um bando de nômades armados que deslocavam-se pelo sertão nordestino, do Ceará à Bahia, pilhando armazéns, estuprando donzelas de família e partindo para o tudo ou nada nas circunstâncias em que se viam cercados pelas volantes e seus macacos, os soldados de todo o país que, em uniformes marrons, perseguiam esses homens e mulheres que ousavam rebelar-se contra o que julgavam uma tirania institucional, que tornava mais ricos os endinheirados e massacrava os mais vulneráveis, sobretudo os que davam o azar de ter vindo ao mundo naqueles nove estados distantes, esquecidos, explorados pelos velhos coronéis das oligarquias locais.
“Maria e o Cangaço” repassa algumas dessas questões, mirando Maria Gomes de Oliveira (1911-1938), Maria de Déa ou Maria Bonita, como passou à História. A baiana morena das pernas grossas foi uma personagem central no noticiário dos anos 1930, capaz de provocar estranhamento e admiração, tópicos muito bem destrinchados por Sérgio Machado nos seis capítulos da nova minissérie da Disney+, livremente inspirados em “Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço” (2018), a biografia romanceada da jornalista Adriana Negreiros. Em cenas que primam pelo realismo, Machado mostra o real cotidiano dos cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião, o cabra da peste com quem Maria Bonita dividiu sonhos e desilusões, até que não restasse mais nada.
Por trás de uma imensa prótese dentária escurecida e um pesado gibão de couro cru, Isis Valverde é absorvida pela figura da mulher sertaneja cartesianamente equilibrada entre a subserviência e a autonomia, servindo de apoio a Lampião ao passo que também influencia o companheiro nas penosas decisões que o Rei do Cangaço precisa tomar acerca das ações do grupo e de seus comandados. No primeiro episódio, “Noite sem Lua”, Machado, o diretor geral, e o corroteirista Armando Praça põem Maria Bonita como a peça fundamental da ofensiva a Piranhas, no oeste alagoano, a partir de Angicos, no extremo norte de Sergipe. Foi ela quem lera uma nota de jornal sobre o eclipse total da lua, na terça-feira 22 de março de 1932, e convenceu Lampião e os outros homens a atravessar a caatinga e chegar à cidade do estado vizinho, onde acertam as contas com Silvério, o delegado vivido por Rômulo Braga, outra das excelentes performances do elenco.
Os confrontos em Piranhas marcam um dos pontos de virada mais excitantes da narrativa e o que leva a subtramas nas quais o diretor elabora outros arcos, a exemplo do que retrata Maria conversando com a irmã, Dondon, sobre o destino de Expedita, a filha que dera à luz a contrapelo, justamente por não querer para a menina a mesma sorte que a sua. Ao contrário de Júlio Andrade na pele de Lampião, Chandelly Braz desdobra “Maria e o Cangaço” para abordagens inauditas a respeito de uma das figuras mais emblemáticas de uma nação que não se conhece, nem Santinha nem canalha. Apenas uma idealista torta.
Série: Maria e o Cangaço
Direção: Sérgio Machado, Thalita Rubio e Adrian Tejido
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 8/10