Como um suspense digno de Oscar, dirigido por David Fincher, passou batido na Netflix? Divulgação / Netflix

Como um suspense digno de Oscar, dirigido por David Fincher, passou batido na Netflix?

Em “O Assassino”, David Fincher esculpe um retrato clínico de um mundo que se confunde com sua própria planilha moral. O protagonista não tem nome porque tampouco tem identidade — é uma engrenagem personificada, moldada para funcionar, não para existir. Sua rotina precisa, seus hábitos cronometrados e sua devoção à ausência de vínculo são a encarnação de um espírito contemporâneo que não distingue eficácia de significado. Cada frase pensada, cada gesto executado, é calculado como parte de uma operação que elimina a subjetividade. O fone de ouvido que repete as mesmas músicas não é trilha sonora, é mantra de autoanulação. Fincher, ao construir esse universo glacial, elimina o conceito de desenvolvimento dramático para substituí-lo por uma lógica de performance. O filme não convida à empatia; ele observa como se fosse uma auditoria comportamental — onde qualquer indício de emoção é um vazamento no sistema.

O protagonista de Fincher não mata por convicção, mas por contrato. A função precede a ética. Ele não hesita porque aprendeu a silenciar qualquer impulso que não esteja previsto no protocolo. O fracasso, quando finalmente ocorre, não inaugura um dilema, mas sim um redimensionamento técnico. É nesse ponto que o filme opera sua reconfiguração mais sofisticada: o erro não desencadeia remorso, mas replanejamento. O matador não busca redenção porque sequer reconhece a existência de uma estrutura moral que exija tal movimento. Sua resposta é logística, não emocional. A vingança é apenas mais uma missão, reorganizada em arquivos, coordenadas e disfarces. E é exatamente aqui que Fincher cria seu paradoxo mais revelador: a desumanização não é o efeito colateral da profissão — é a sua essência. A brutalidade não é um acidente, mas um formato de funcionamento.

Num dos momentos mais intensos da narrativa, um confronto físico deixa o campo da abstração e traz o corpo de volta ao primeiro plano. O impacto não está na violência, mas na sua inevitabilidade mecânica. A sequência não é construída para excitar, mas para denunciar a falha de um sistema que se pretendia infalível. Quando o algoritmo vacila, a carne precisa responder. A tensão ali não é entre dois indivíduos, mas entre o ideal de controle e sua erosão súbita. Fincher filma esse embate como se fosse uma interrupção forçada no fluxo da automação, um glitch que obriga o espectador a confrontar a matéria do mundo que o personagem tenta suprimir. A estética do diretor, por vezes acusada de fria, encontra aqui sua plenitude: não como ausência de afeto, mas como recusa consciente a qualquer ilusão de espontaneidade. Cada plano se encaixa como uma engrenagem visual que não deseja comover, mas afirmar uma estrutura.

Ainda assim, a película não abandona a possibilidade de revelação. A ausência de emoção, longe de anestesiar o espectador, o obriga a buscar sentido nas entrelinhas. O matador, ao tentar eliminar todas as variáveis que o tornariam vulnerável, acaba evidenciando a fragilidade do próprio ideal de invulnerabilidade. Em cada encontro com suas vítimas, não há catarse, apenas confirmação de um mundo onde a indiferença é condição de sobrevivência. A mulher que compreende sua sentença sem resistência, o intermediário que aceita o destino como um risco estatístico — todos refletem uma aceitação passiva de um sistema onde a morte é menos trágica do que inoportuna. Fincher ilumina não a violência em si, mas o vazio que a precede. Michael Fassbender, com uma contenção quase desumana, atua como vetor dessa dessensibilização programada, guiando o espectador por um labirinto onde o afeto foi substituído por eficiência operacional.

O filme não conclui; ele se esvazia. A progressão narrativa não conduz a um ponto de ruptura, mas a uma restauração discreta da rotina. O personagem retorna ao seu ciclo com uma serenidade que não brota da paz, mas da continuidade. Não há epifania, apenas persistência. Fincher rejeita o arco tradicional para sugerir uma hipótese mais inquietante: talvez a verdadeira tragédia contemporânea seja a capacidade de seguir em frente mesmo após o colapso interno, desde que as funções se mantenham operacionais. A supressão da singularidade humana não é punição, é sintoma. O gesto repetido, a missão cumprida, o silêncio mantido — são esses os sinais vitais desse organismo social onde a perfeição virou patologia.

Ao optar por transformar o thriller em uma cartografia da disciplina, “O Assassino” desmonta os próprios alicerces do gênero. Não há tensão crescente, apenas constatação contínua. Não há revelações, mas procedimentos. Em vez de um herói em conflito, temos um executante em perpétuo monitoramento. O filme é menos um enredo do que um diagnóstico, menos entretenimento do que dissecação. E é nesse vácuo narrativo que Fincher instala sua crítica mais potente: a substituição do desejo pelo desempenho. A eficiência como ideologia, o silêncio como método, a neutralidade como discurso. O matador não é um monstro. Ele é o espelho invertido de uma sociedade que desistiu de perguntar por quê, desde que tudo continue funcionando.

Filme: O Assassino
Diretor: David Fincher
Ano: 2023
Gênero: Ação/Aventura/Crime/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★