No centro do mais recente filme de Martin Scorsese não está a denúncia explícita de um crime bárbaro, tampouco o resgate de uma injustiça histórica sob a ótica dos vencidos. O que pulsa — com precisão cirúrgica — é a normalização do horror quando mediado por vínculos afetivos, instituições de fachada e discursos de tutela. Ao escolher narrar os assassinatos dos Osage pelo olhar de Ernest Burkhart, sujeito que não lidera nem se rebela, mas apenas consente, o diretor articula uma tese inquietante: o verdadeiro agente da barbárie não é o monstro isolado, mas aquele que colabora com docilidade, sem jamais medir o alcance da própria omissão. Ernest não age como um antagonista, mas como um intermediário passivo entre a violência e sua legitimação social.
Essa decisão narrativa não isenta o filme de dilemas, mas amplifica sua carga crítica. A encenação do cotidiano de Fairfax na década de 1920, onde a prosperidade do petróleo se mistura ao delírio racial da modernidade branca, opera como uma coreografia silenciosa de dominação. As mortes não ocorrem em segredo — elas se desdobram diante de olhares que escolhem não enxergar. Scorsese retrata uma terra onde a vida dos Osage é cuidadosamente administrada por estruturas legais que mascaram a espoliação sob a aparência de proteção. E nesse terreno fértil para a dissimulação, William Hale floresce como símbolo do predador institucionalizado: sua conduta mansa, sua retórica de proximidade e seu verniz de benevolência operam em consonância com um sistema que prefere matar devagar, sob os ritos da lei e da família.
A contenção de Lily Gladstone, no papel de Mollie, estabelece um contraponto poderoso à maquinaria de morte que a cerca. Sua presença se impõe não pela eloquência, mas pela densidade emocional que carrega em silêncios e olhares. No entanto, é notório o quanto o roteiro reduz seu protagonismo a momentos de reação, e não de enfrentamento. Essa limitação não decorre da atriz, mas de uma decisão estrutural: priorizar a trajetória de quem destrói em vez de quem resiste. A força simbólica de Mollie permanece intacta, mas poderia ter sido motor da narrativa, não apenas seu testemunho pungente.
Leonardo DiCaprio entrega aqui uma performance que desfaz a aura magnética habitual de seus personagens. Sua versão de Ernest é desprovida de vigor heroico ou astúcia vilanesca. Ele é o eco de uma moralidade falida, um homem que se conforma com o papel de peão em um jogo que não compreende — e não quer compreender. O gesto mais perturbador de seu personagem não é o crime, mas a naturalidade com que o aceita. A pergunta feita por Tom White — “Você é um homem bom?” — ressoa como núcleo ético do filme, revelando que a violência mais perversa não exige sangue nas mãos, apenas a recusa sistemática em fazer perguntas.
Narrativamente, o longa se arrisca ao investir quase exclusivamente na ótica dos algozes. A decisão tensiona o espectador entre a imersão e o desconforto. Embora os Osage apareçam em momentos chave — em rituais, reuniões, viagens em busca de justiça — esses instantes têm mais função ambiental que estruturante. A cena final, autorreflexiva e metalinguística, tenta desestabilizar a narrativa hegemônica ao revelar como a história é moldada, editada e vendida ao gosto da plateia branca. Ainda que potente, esse gesto vem tardiamente: a lógica do filme já consolidou sua inclinação.
Do ponto de vista técnico, o filme se beneficia de um rigor estético que articula densidade dramática com sensorialidade imersiva. A fotografia de Rodrigo Prieto investe em composições que materializam o peso da opressão com luzes que esmaecem as fronteiras entre o íntimo e o estrutural. A trilha sonora de Robbie Robertson, por sua vez, constrói uma ponte entre o espírito ancestral e o abismo do presente. Ainda assim, há momentos em que o preciosismo formal ameaça diluir a crueza necessária ao tema: a depuração estética de certos figurinos e a duração excessiva de algumas sequências atenuam a ferocidade que o enredo carrega em si.
Scorsese revisita, aqui, os dilemas morais que marcaram parte de sua filmografia, mas agora os inscreve em uma camada geopolítica de maior alcance. Não se trata apenas da anatomia de uma máfia ou da queda de um homem ambicioso, mas da engrenagem histórica de um país fundado sobre o apagamento de corpos e memórias. O filme não pede identificação com seus personagens — convida à suspeita. Sua força não está na empatia, mas na provocação: o que torna um genocídio palatável? Quais narrativas o suavizam até que pareça uma fatalidade cultural? E, acima de tudo, quem é autorizado a contá-lo?
Essa recusa em entregar respostas prontas ou modelos redentores transforma “Assassinos da Lua das Flores” em algo mais do que uma narrativa sobre o passado. É um espelho desconfortável voltado para o presente, onde o horror não grita, mas se acomoda nos gestos cotidianos, nas heranças que não se questionam e nos afetos que operam como instrumentos de exclusão. O filme não quer nos redimir — quer que nos perguntemos o que significa, realmente, ser cúmplice.
★★★★★★★★★★