Com ator de Dark, drama sobre Segunda Guerra Mundial está no Prime Video Divulgação / DREIFILM

Com ator de Dark, drama sobre Segunda Guerra Mundial está no Prime Video

Em uma época em que os rostos se perdiam entre uniformes e denúncias sussurradas, caminhar livremente pelas ruas de Berlim em plena Segunda Guerra Mundial exigia mais do que coragem — era necessário talento para o disfarce, domínio sobre a própria expressão e uma capacidade quase teatral de reinventar-se a cada esquina. “O Falsificador”, longa dirigido por Maggie Peren, revolve justamente essa zona ambígua entre o fingimento e a sobrevivência, ao reconstruir a jornada de Cioma Schönhaus, jovem judeu que escapa da morte criando documentos falsos enquanto esconde sua verdadeira identidade sob o uniforme de um soldado do Reich. Mas essa não é apenas uma narrativa sobre camuflagem: é uma reflexão sobre como a identidade pode ser manipulada como ferramenta de rebelião silenciosa em meio a um regime que tudo devora — inclusive os nomes.

Ao transformar a falsificação de documentos em um ato de resistência quase artística, o filme desloca o campo de batalha para um território inesperado: a intimidade. Aqui, não há tanques ou explosões — há tintas, papel e o gesto quase trivial de imitar uma assinatura. E, no entanto, cada traço contém uma vida em potencial. É nesse microcosmo que a tensão se instala: nos detalhes, nos silêncios calculados, no perigo de um sorriso fora de hora. O que Peren constrói não é uma ode à esperteza individual, mas uma meditação sobre o preço de se manter vivo quando tudo à volta conspira pela aniquilação — inclusive a linguagem, os afetos e o próprio tempo. O disfarce, nesse contexto, não serve apenas para escapar: ele é a única maneira possível de afirmar uma existência que o regime insiste em apagar.

Cioma, interpretado com precisão milimétrica por Louis Hofmann, não é herói nem mártir: é um homem que se recusa a desaparecer. Seu corpo ariano, sua desenvoltura social e sua capacidade de improviso não o tornam invulnerável — apenas lhe oferecem uma margem estreita de manobra. E ele a explora com a energia de quem sabe que cada gesto cotidiano — atravessar a cidade, tomar um café, dar risada — pode ser sua última afirmação de liberdade. A grande força do personagem está justamente nessa dissonância: entre o risco extremo e o comportamento aparentemente banal, entre a consciência aguda do perigo e a recusa obstinada em viver como sombra. O espectador, assim como os agentes do regime, também vacila: será ele destemido ou inconsequente? Otimista ou alheio? Essa ambiguidade é o que torna sua trajetória tão pulsante — e tão insuportavelmente real.

Ao invés de embarcar no revisionismo épico que tantas vezes domina narrativas ambientadas na Segunda Guerra, “O Falsificador” recusa o espetáculo para apostar na minúcia. A guerra, aqui, não é um campo de batalha externo, mas um cerco interno: ela habita os corredores, se insinua nos jantares improvisados, aparece na hesitação entre atender ou não uma batida na porta. Trata-se de um cinema de espreita, onde o horror não grita, mas se insinua nas pequenas frestas da rotina. E justamente por isso, o filme é tão inquietante: porque revela como a barbárie pode se entranhar no cotidiano até que a simples decisão de sair à rua se torne um ato político.

Peren domina essa economia do gesto. Sua direção não romantiza a resistência, mas tampouco a enrijece num molde ético fechado. Ao contrário, aposta na instabilidade, na dúvida, no improviso como matéria da sobrevivência. E nessa instabilidade, encontra beleza — não como idealização, mas como vestígio: uma dança num cabaré clandestino, um flerte rápido entre olhares, um jantar sob risco. São momentos que, longe de suavizar a brutalidade histórica, apenas a tornam mais palpável, mais insuportável. Porque lembram, com crueza, que havia vida ali — vida que insistia, apesar de tudo.

O elenco que orbita em torno de Cioma amplia essas tensões. Luna Wedler encarna Lilo com uma presença dúbia, feita de desejo e medo em doses justas, enquanto Jonathan Berlin constrói um Fritz silenciosamente dilacerado, cuja lealdade flutua à deriva da sobrevivência. Essas relações não operam como muletas dramáticas, mas como espelhos rachados da própria fragilidade humana: são vínculos que resistem enquanto podem, até serem testados por um sistema cuja lógica é a de ruptura permanente.

A Berlim que o filme reimagina não é cenário congelado em tons de sépia, mas um organismo em decomposição — ao mesmo tempo decadente e vibrante. Cabarés ainda funcionam, portas ainda se abrem, canções ainda tocam, mesmo enquanto a cidade afunda em vigilância e delação. É nessa Berlim que a inventividade de Cioma encontra espaço: não como fuga do real, mas como modo de enfrentá-lo. Forjar identidades não é apenas salvar os outros — é salvar-se também do abismo de ser reduzido a um número, a um inimigo do Estado, a um corpo sem história.

Se há algo que o filme recusa, é o conforto da analogia fácil. Não há here “alertas para o presente” sublinhados em neon. Em vez disso, há uma recusa ativa em nivelar brutalidades: a experiência de Cioma, e de tantos outros, não serve como metáfora, mas como testemunho. É a singularidade dessa violência — e a singularidade das estratégias de quem a enfrentou — que merece ser preservada. E, nesse sentido, o filme não oferece soluções nem ensinamentos: oferece apenas a complexidade do humano, agindo sob pressão, errando, hesitando, mas ainda assim criando.

“O Falsificador”, portanto, não se acomoda na etiqueta de “história inspiradora”. Ele opera em outro registro: o de um cinema que entende a sobrevivência como performance, resistência como invenção, e o corpo como último bastião de liberdade. O que vemos não é apenas um homem fugindo — é alguém que insiste em dizer “eu sou” num mundo que grita “você não existe”. E essa insistência, feita de papel, tinta e um riso teimoso, talvez seja uma das formas mais radicais de resistência já levadas à tela.

Filme: O Falsificador
Diretor: Maggie Peren
Ano: 2022
Gênero: Biografia/Drama/História
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★