A maior estreia de 2025 chegou ao Prime Video — e vem com 13 indicações ao Oscar Divulgação / Pathe Films

A maior estreia de 2025 chegou ao Prime Video — e vem com 13 indicações ao Oscar

É sempre desconcertante quando um filme se recusa a seguir a rota segura do reconhecimento automático. “Emilia Pérez”, longe de ser um exercício de contenção, é uma colisão frontal entre gêneros, discursos e expectativas. Jacques Audiard, francês e obstinado, não recua diante da ousadia: aposta numa ópera kitsch sobre narcotráfico, transição de gênero e justiça social encenada em um México inventado dentro de um estúdio parisiense. O resultado? Uma provocação que transita entre o riso contido e o desconforto explícito, negando ao espectador qualquer zona de conforto. A questão não é se “Emilia Pérez” é realista — é se, em sua artificialidade assumida, ela não acaba dizendo mais do que as ficções pretensamente realistas.

O que Audiard empreende não é apenas um “pastiche” — termo preguiçosamente usado para deslegitimar aquilo que mistura referências com prazer —, mas um manifesto estético que embaralha os códigos do musical, do melodrama e da crônica criminal. A história de Manitas Del Monte, narcotraficante em conflito com seu corpo e sua história, abre espaço para uma transformação radical: o abandono do poder pelo gesto mais vulnerável possível — tornar-se quem se é. Ao fazer disso um espetáculo emoldurado por números musicais e cenas de violência sutil, Audiard constrói um universo paradoxal: tão artificial quanto brutal, tão extravagante quanto meticuloso. E ao fazer isso sem jamais pedir desculpas por seu tom farsesco, ele expõe os moralismos travestidos de crítica social.

Há quem se incomode com a territorialidade simbólica do projeto — o direito de um francês criar uma narrativa ambientada em um México moldado por sua imaginação. Mas essa crítica escorrega ao tropeçar nos mesmos moralismos que o filme ironiza. “Emilia Pérez” não pretende representar o México real, mas o México dos mitos contemporâneos, onde feminicídio, desaparecimentos forçados e impunidade convivem com figuras quixotescas que tentam devolver um mínimo de dignidade às vítimas. É nesse espaço fabular que a personagem-título se instala: uma mulher trans que reverte o dinheiro sujo do passado em ações judiciais em defesa dos inocentes, sem jamais apagar de si as marcas do que foi — nem esperar perdão por isso.

O papel de Emilia é vivido por Karla Sofía Gascón, e o fato de a atriz ser, também ela, uma mulher trans, foi suficiente para detonar reações virulentas e controversas — que nada têm a ver com o conteúdo do filme e tudo a ver com o estado patológico das redes sociais. Gascón, ao invés de articular um discurso coerente diante das críticas, preferiu dobrar a aposta na vitimização pública. Essa postura, ao contrário da dignidade que sua personagem constrói no decorrer da narrativa, enfraquece a potência simbólica do gesto que deveria ser de reconciliação. Há uma diferença abissal entre se redimir e se justificar. Emilia o entende. Gascón, talvez nem tanto.

Mas o que faz de “Emilia Pérez” uma obra singular — e, para alguns, imperdoável — é justamente sua disposição em dramatizar a reparação como escolha estética e não como panfleto. Ao transformar um enredo potencialmente panfletário em uma fábula quase mitológica, Audiard prova que ainda é possível fazer política com arte, sem submeter uma à outra. Manitas não busca redenção para apagar o passado, mas para transformá-lo em alicerce de outra coisa — talvez mais instável, certamente mais honesta. E é aí que o filme ganha seu ponto mais alto: quando permite que a contradição respire.

É preciso reconhecer: “Emilia Pérez” não quer agradar. Prefere instigar. E, nesse processo, desmonta as categorias de conforto que boa parte da crítica ainda utiliza para classificar o que é “válido” ou “legítimo”. Audiard e Gascón, em suas respectivas dissonâncias, apontam para um cinema que não tem medo de se tornar estranho para ser verdadeiro. Que, mesmo quando tropeça, tropeça por excesso de tentativa, jamais por medo de errar. Isso, num mundo que já desistiu de se comprometer com alguma forma de risco criativo, não é pouca coisa.

Filme: Emilia Pérez
Diretor: Jacques Audiard
Ano: 2024
Gênero: Crime/Musical
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★