No Prime Video: o dia em que Virginia Woolf mudou a vida de três mulheres — e talvez mude a sua também Divulgação / Paramount Pictures

No Prime Video: o dia em que Virginia Woolf mudou a vida de três mulheres — e talvez mude a sua também

Muito se fala de “Mrs. Dalloway” (1925), talvez o romance mais famoso de Virginia Woolf (1882-1941), mas “As Horas” estrutura-se mesmo em outro trabalho da escritora londrina que, surpreendentemente, dorme esquecido nos braços mornos do tempo. Em “Um Quarto Só Seu” (1929), Woolf lançou as bases do feminismo moderno, recorrendo à metáfora mais direta para sustentar que mães de família bem-casadas não deveriam resignar-se com suas casas suntuosas, se não tinham um espacinho onde pudessem recolher-se de quando em quando.

A partir de “Um Quarto Só Seu”, Stephen Daldry chega a “Mrs. Dalloway”, e daí para seu filme, baseado no romance vencedor do Pulitzer do americano Michael Cunningham, de 1998, cujo título por seu turno brinca com “Os Anos” (1937), o penúltimo trabalho de Woolf e seu último publicado em vida, sobre as transformações de uma família endinheirada em meio século — sete décadas mais tarde, a francesa Annie Ernaux, ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, também apropriou-se da antecessora e usou da mesma analogia num romance autobiográfico. Pelo visto, Woolf dá sorte, ainda que sua vida desditada seja o alfa e o ômega de “As Horas”, por onde o roteiro de David Hare passeia ligando três gerações de mulheres a uma infeliz coincidência com a vida de uma genuína esteta do sofrimento. 

Na primeira sequência de “As Horas”, Woolf aparece em Sussex, entrando num rio, com os bolsos do casaco cheios de pedras, para afogar-se. Dez anos depois, em 1951, Laura Brown dá entrada num hotel levando um estoque de soníferos potentes, e por fim, em 2001, Clarissa Vaughan ameaça jogar-se de uma janela, enquanto escuta o lamento e as considerações desesperadas do ex-marido quanto a demovê-la da ideia. Woolf, Laura e Clarissa são três mulheres algo semelhantes entre si e também parecidas com a protagonista do romance de 1925, que, ao terminar o desjejum frugal, vai comprar flores para a festa que dará à noite. Daldry se fixa em Woolf escrevendo seu romance para passar a Laura, que o lê entre um e outro suspiro de desalento e a Clarissa, que repete uma das falas de Mrs. Dalloway enquanto escolhe o ramalhete mais bonito.

O diretor realça a solidão do trio ora evidenciando os ambientes claustrofóbicos no qual estão duas dessas personagens, ora as colocando em cenários abertos, como o carrossel de emoções que parece ter sido a jornada de Woolf, encarcerada ao que hoje se dá o nome de transtorno bipolar desde os treze anos de idade. Woolf vai e vem ao longo da narrativa, ao lado do marido, Leonard, de Stephen Dillane, e acompanhada das outras duas mulheres com dores muito suas, das quais partilhava o pedaço mais duro. Decerto a grande mágica em “As Horas” é observar como Daldry consegue fazer dos três contos de solidão e loucura uma só história, ancorada por Nicole Kidman, que ganhou seu Oscar de Melhor Atriz pelo papel e que conta com coadjuvantes de peso como Meryl Streep e Julianne Moore, na pele de Clarissa e Laura, respectivamente. Mulheres presas num quarto apertado, à espera de um farol, como tantas ainda hoje, passado um século de “Mrs. Dalloway”.

Filme: As Horas 
Diretor: Stephen Daldry 
Ano: 2002
Gênero: Biografia/Drama/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.