Aclamado como um dos melhores de 2024, drama histórico arrebatador chega à Netflix Divulgação / Paris Filmes

Aclamado como um dos melhores de 2024, drama histórico arrebatador chega à Netflix

Filmes sobre temas brutais nem sempre são atrozes, e essa é outra razão para que despertem o interesse do espectador. Torna-se muito mais instigante acompanhar o crescimento de uma história do ponto de vista da total surpresa quanto ao que autor, diretor e elenco querem nos fazer imaginar do que se entregassem tudo de imediato, de bandeja, restando a nós apenas o espanto. As emoções mais primitivas ficam à flor da pele, e nos fazem reféns dos próximos desdobramentos da trama, que pode muito bem avançar por rumos insuspeitos, inventar sua própria lógica, brincar com as expectativas do público sem a menor cerimônia — e capturá-lo sem chance de defesa justamente por isso.

Histórias verdadeiramente boas não se interessam por manifestar qualquer tipo de fidelidade, a quem quer que seja, o que não deixa de ser um perigo na medida em que, de tão surpreendentes, podem sair do eixo e não responder mais aos estímulos da audiência, que também se cansa de tantos melindres e arroubos de autossuficiência. Histórias verdadeiramente boas também enfrentam provações, como Alejandro Gómez Monteverde deixa claro em “Cabrini”. Monteverde dá um tempo da controvérsia dispersiva de produções-bomba a exemplo de “Som da Liberdade” (2023) ao contar a vida de Francesca Cabrini (1850-1917), uma freira católica italiana que atravessou o Atlântico para montar em Nova York uma das maiores redes de assistência social do mundo, mas ainda assim estimula no público certas irrequietudes, nada tão despropositado quando se trata de personalidades que dobram o senso comum e desafiam seus superiores na busca do bem coletivo.

Os sonhos são as únicas coisas capazes de tornar a vida mais suportável e menos infame. Que grande revolução haveria de dar-se nos povos do mundo inteiro se cada um tivesse sonhos grandiosos o bastante para serem perseguidos sem folga, até que, por fim, saíssem do baço plano das ideias e passassem à vida como ela é, o que, evidentemente, só seria possível se fôssemos todos nós dignos deles. Quase sempre é necessário que larguemos tudo, abandonemos a vida que levávamos, sintamo-nos livres para rever determinados pontos de nossa trajetória para que consigamos acessar os meandros mais obscuros de nosso espírito. É o que faz madre Cabrini que, depois de inúmeras cartas enviadas ao papa Leão 13 (1810-1903), viaja de Codogno, na Lombardia, para o Vaticano, só para receber de Sua Santidade um não de viva-voz.

Monteverde e o corroteirista Rod Barr esmeram-se no perfil de uma obstinada, que não cria que sua condição de mulher, serva e de saúde fragil fosse empecilho para alcançar seu objetivo: instituir uma casa de longa permanência para órfãos e crianças vulneráveis, sediada na China. Nisso Cabrini poderia estar sim sonhando alto, e ela é despachada para uma favela de Five Points, no subúrbio lamacento e brutal do que é hoje o centro do capitalismo, construído por carcamanos sujos e analfabetos, seus compatriotas, que chegaram em peso à América entre 1889 e 1910. Cristiana Dell’Anna é o corpo e o sangue desse filme assumidamente blasfemo e corajoso, que resgata uma parte da incalculável importância de Francesca Cabrini para a história da filantropia, um alvo que religiões de todas as matrizes jamais poderiam perder de vista.

Filme: Cabrini
Diretor: Alejandro Gómez Monteverde
Ano: 2024
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.