Para inteligentes: o terror que vai atormentar seu cérebro com enigmas e metáforas geniais, na Netflix Divulgação / UPI

Para inteligentes: o terror que vai atormentar seu cérebro com enigmas e metáforas geniais, na Netflix

Em “Nós”, Jordan Peele constrói uma reflexão perturbadora sobre a estrutura da sociedade americana, expondo como a promessa do sonho capitalista repousa sobre uma base de desigualdade crônica. A narrativa do filme não se limita a abrir um embate entre duas versões de uma mesma família, mas propõe uma discussão sobre os mecanismos que sustentam privilégios e marginalizam aqueles que vivem à sombra desse sistema. A suposta meritocracia, tão exaltada na cultura dos Estados Unidos, se revela uma ilusão frágil, sustentada por um ciclo interminável de exploração. Peele, com sua habilidade para manipular símbolos, transforma cada cena em um espelho distorcido de uma nação dividida entre aqueles que ascenderam e os que foram condenados ao esquecimento.

O simbolismo é um dos alicerces centrais dessa crítica. A evocação do evento “Hands Across America” funciona como uma metáfora contundente: o gesto de união, que nos anos 1980 buscava angariar fundos para a erradicação da fome, não passava de um espetáculo inócuo, mais preocupado com sua imagem midiática do que com mudanças concretas. Essa estética do engajamento superficial encontra eco na dinâmica da família protagonista, especialmente em Gabe, o pai que acredita que status e segurança se compram com bens materiais. Sua tentativa de subornar os doppelgängers para preservar a própria vida revela a cegueira dos privilegiados, que supõem que dinheiro seja a solução universal, mesmo quando confrontados por algo que escapa completamente ao seu domínio.

Os Tethered, figuras grotescas que replicam as ações de seus equivalentes da superfície, são a personificação dos esquecidos, daqueles que sustentam o funcionamento da sociedade sem jamais serem vistos. Seu comportamento, inicialmente irracional, se revela um eco de uma estrutura opressiva que os condicionou à repetição automática, negando-lhes qualquer agência. A cena em que a doppelgänger da matriarca branca experimenta maquiagens e roupas de luxo, apenas para mutilar seu próprio rosto em seguida, encapsula essa lógica cruel: o desejo de ascensão é instintivo, mas a estrutura impede qualquer real integração, forçando aqueles à margem a se autodestruírem no processo.

A meticulosidade de Peele se estende às referências culturais que povoam a trama. A camiseta do Black Flag, vestida por um trabalhador do parque de diversões nos anos 1980 e, posteriormente, por uma adolescente privilegiada, sugere a ressignificação do discurso de resistência. O que antes simbolizava inconformismo e rebeldia é reduzido a um acessório desprovido de significado. A alusão a “Thriller”, videoclipe icônico de Michael Jackson, é igualmente carregada de simbolismo. Peele já declarou que enxerga Jackson como “o santo padroeiro da dualidade”, alguém cuja identidade pública oscilava entre diferentes narrativas, assim como Adelaide, a protagonista que esconde um segredo essencial sobre sua origem. Cada detalhe visual contribui para a construção de um mundo onde as aparências enganam e onde os limites entre vítima e algoz se confundem.

O terror em “Nós” não está em sustos ou na presença de um antagonista definido. Peele trabalha com um horror existencial, uma atmosfera de desconforto crescente que se assemelha ao cinema de John Carpenter, em que o mal não precisa de motivações elaboradas para ser aterrorizante. Para garantir essa intensidade, o diretor instruiu seu elenco a estudar obras que vão de “O Iluminado” a “Deixe Ela Entrar”, ampliando o repertório interpretativo dos atores. Lupita Nyong’o se destaca ao construir duas versões de Adelaide com camadas psicológicas distintas, ancorando a narrativa na complexidade de sua performance.

O clímax do filme entrega uma das imagens mais inquietantes do cinema contemporâneo: uma corrente humana se estende pelo horizonte, replicando o gesto de “Hands Across America”, agora despojado de qualquer fachada benevolente. Não há discurso triunfante, apenas um país em ruínas, onde a resistência pode não passar de um ciclo de violência que se repete sob novas máscaras. Peele não oferece respostas, apenas um espelho cruel para que o público encare sua própria complacência. “Nós” não é apenas um título — é um lembrete de que somos tanto os beneficiários quanto os cúmplices de um sistema que escolhe quem brilha na superfície e quem apodrece nas sombras.