Magistral e hipnotizante, esta história de amor improvável — que você ainda não viu — está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Magistral e hipnotizante, esta história de amor improvável — que você ainda não viu — está na Netflix

Em qualquer período histórico ou região geográfica, a conexão profunda entre o ser humano e outras espécies representa um inesgotável campo para a reflexão filosófica e antropológica. Uma produção cinematográfica como a realizada por Albert Hughes propõe justamente esse percurso investigativo ao retroceder aos tempos pré-históricos e ao deslocar o ponto inicial da aproximação afetiva entre humanos e cães para cerca de vinte mil anos atrás. A narrativa cinematográfica assume, então, o desafio de mergulhar nessa época distante, revelando não apenas os contrastes e as afinidades entre homem e animal, mas abrindo também espaço para compreender por que cultivamos um apego quase irracional por criaturas aparentemente tão diversas de nossa própria espécie. De forma corajosa, porém debatível, Hughes aceita certas imprecisões históricas e permite liberdade interpretativa na reconstrução deste encontro pioneiro, priorizando o sentido emocional, evocativo e poético em detrimento do rigor cronológico absoluto.

Desde o primeiro momento, evidencia-se que o elo entre homem e animal nasce de um encontro traumático, marcado pelo conflito e pela disputa por sobrevivência. Nessa perspectiva, a aproximação inaugural entre ambos os seres se dá em condições dramáticas e pouco amigáveis, quando a humanidade ainda era definida mais pela força física que por sua capacidade intelectual ou sensibilidade emocional. O personagem central dessa história, interpretado com delicadeza por Kodi Smit-McPhee, vivencia o dilema entre corresponder às expectativas violentas de sua tribo e sua inclinação natural à empatia e à misericórdia. No momento decisivo em que precisa sacrificar um animal ferido, Keda vacila, expressando uma compaixão que naquele ambiente hostil é julgada como fraqueza. A decisão de hesitar diante da morte lançará o jovem num precipício literal e metafórico, isolando-o da coletividade à qual jamais sentira pertencer plenamente. Ao enfatizar essa dissonância essencial entre indivíduo e grupo, Hughes constrói com competência um drama existencial delicado sobre as dificuldades de se aceitar valores morais divergentes em ambientes que privilegiam o poder físico e a crueldade estratégica como meio de sobrevivência.

O diretor emprega com destreza uma linguagem visual e narrativa ágil e precisa, estruturada na montagem eficiente de Sandra Granovsky. A construção das cenas, especialmente nas sequências de caça e na queda de Keda, transmite uma visceralidade que contrasta com o lirismo implícito do protagonista, sublinhando com clareza o embate constante entre a crueza do ambiente e o desejo inato de sobrevivência. Ao retratar a solidão de Keda em sua travessia pelo deserto de gelo, enfrentando perigos incessantes e ameaças de predadores, a trama intensifica sua dimensão filosófica, questionando a fragilidade inerente à condição humana e a busca contínua por afeto e proteção. Assim, quando o jovem se vê diante da necessidade de confrontar a alcateia que o persegue, sua reação é a defesa desesperada, porém profundamente humana, que culmina na incapacitação do líder lupino. O gesto paradoxal de salvar o animal agonizante inaugura uma parceria improvável e singular, redimensionando o conceito de força e poder a partir da sensibilidade e empatia como traços valiosos e dignos de sobrevivência.

A grande força dramática do filme reside justamente na sua capacidade de transcender o paradoxo central da trama: a amizade entre Keda e o lobo surge da impossibilidade inicial desse vínculo. O diretor parece plenamente consciente das concessões lógicas e históricas feitas, insistindo, no entanto, em valorizar uma narrativa essencialmente alegórica sobre solidariedade e compaixão em ambientes improváveis. A ideia de uma convivência harmoniosa construída sobre o respeito e admiração mútuos, superando a brutalidade instintiva que dominava ambas as espécies, ganha força precisamente pela suspensão consciente da veracidade literal. Trata-se, assim, não apenas da história de uma domesticação animal primitiva, mas sobretudo de uma celebração artística do encontro com o outro, com o diferente, cuja empatia conduz naturalmente ao estabelecimento de vínculos tão profundos quanto improváveis. A excepcional fotografia de Martin Gschlacht contribui decisivamente para a credibilidade emocional da fábula proposta, apresentando com beleza hipnótica a vastidão congelada que simboliza tanto o perigo quanto a possibilidade de comunhão sincera entre homem e lobo.

Ao abdicar deliberadamente de um realismo absoluto, o filme busca não apenas subverter os clichês habituais do gênero, mas também oferecer ao público uma reflexão sutil sobre a constante negociação entre nossos instintos mais primitivos e as capacidades empáticas que nos definem como seres civilizados. O protagonista ressignifica a expectativa da brutalidade masculina ao escolher proteger em vez de destruir, conferindo um inesperado valor emocional à relação recém-construída. O lobo, por sua vez, deixa claro que não é apenas um simples beneficiário dessa escolha, mas sim um colaborador ativo no processo de aprendizagem e reciprocidade afetiva. Ambos escapam à expectativa dominante da violência e competitividade, redefinindo-se por meio do afeto mútuo, da empatia crescente e da compreensão compartilhada das vulnerabilidades e necessidades um do outro.

Ao estabelecer tais premissas, o filme direciona o olhar contemporâneo para uma percepção renovada das origens dos laços humanos e animais. Compreendendo o nascimento desse vínculo ancestral sob um viés simbólico e poético, abre espaço para reflexões sobre nossa capacidade única de transformar relações improváveis em conexões essenciais. E, ao final, o espectador percebe que esse laço inaugural, mesmo construído sob condições narrativamente ficcionais e carregado de simbolismos subjetivos, anuncia de maneira silenciosa e irresistível todas as histórias reais e emocionantes de companheirismo e dedicação incondicional que até hoje celebramos e experimentamos cotidianamente, sem jamais deixar de nos fascinar.

Filme: Alfa
Diretor: Albert Hughes
Ano: 2018
Gênero: Drama/Fantasia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★