Num cenário onde o entretenimento se confunde com suplício e a estética da dominação se perpetua sob aplausos e votos de audiência, distopias não são meros exercícios de imaginação sombria — são réplicas desfiguradas do que já nos tornamos. Não é por acaso que nos sentimos à vontade nesses futuros degradantes: reconhecemos neles o reflexo deformado de um presente que há muito abdicou da dignidade como premissa. A insistência do ser humano em trilhar os caminhos mais sórdidos da autodestruição econômica, ética e afetiva torna a ficção especulativa um espelho incômodo, ainda que necessário. Em “Jogos Vorazes: Em Chamas”, a engrenagem distópica não é apenas retomada — ela é tensionada ao limite, graças à direção de Francis Lawrence, que substitui Gary Ross sem perder o pulso do que há de mais brutal e, paradoxalmente, sensível na trajetória de Panem. O roteiro, adaptado por Michael Arndt e Simon Beaufoy, recusa-se à complacência e expande o alcance simbólico do jogo, onde o espetáculo da crueldade é institucionalizado sob a égide da normalidade.
Nesse novo movimento, o que está em jogo extrapola o tabuleiro da arena: o próprio contrato social entre opressores e oprimidos começa a se esgarçar. Jennifer Lawrence, em uma performance que equilibra exaustão emocional e potência insurgente, se torna o eixo de um campo de forças onde a esperança é uma arma de dois gumes. Sua Katniss já não é apenas um ícone de resistência fabricado pela mídia do Capitólio; ela começa a escapar de todos os rótulos, até mesmo dos que supostamente a alçam à categoria de símbolo. A insipidez da química com Peeta Mellark, interpretado sem qualquer vibração por Josh Hutcherson, serve ironicamente para acentuar o deslocamento da protagonista em relação ao script emocional que lhe é imposto. A simulação de afeto é, afinal, mais uma das farsas exigidas pelo espetáculo. Ainda assim, as revoltas engatilhadas por esse falso romance adquirem vida própria, minando lentamente a autoridade de Snow, figura gélida e impiedosa interpretada com gravidade inquietante por Donald Sutherland.
A estética melancólica de Jo Willems e a trilha sonora discreta, mas meticulosamente calculada de James Newton Howard, contribuem para a sensação de que tudo se encontra em estado de combustão latente. Os distritos, antes resignados, agora vibram com uma raiva quase silenciosa, que se infiltra nos cantos mais insuspeitos da narrativa. Philip Seymour Hoffman, em um dos últimos papéis antes de sua morte, imprime a Plutarch Heavensbee um cinismo dúbio que tensiona ainda mais a leitura maniqueísta da história. A condução de Francis Lawrence recusa-se a suavizar o grotesco da política do espetáculo. A figura caricata de Caesar Flickerman, vivida com um deboche calculado por Stanley Tucci, funciona como catalisador desse universo onde o sofrimento é convertido em entretenimento e a empatia é dosada conforme a necessidade do script.
Mais do que uma sequência eficiente, “Em Chamas” se permite o luxo de ser um ensaio sobre como regimes autoritários exploram o sentimentalismo como ferramenta de controle. O jogo é menos sobre vencer e mais sobre manipular narrativas, colonizar afetos, fabricar mártires. O distrito 12, com seus dois tributos lançados novamente à arena, é o ponto cego de um império que subestima a força do desgaste emocional acumulado. Ao tornar os tributos símbolos involuntários de uma revolução em marcha, a história reflete sobre como qualquer sistema autoritário se autoboicota ao transformar seus inimigos em arquétipos. A distopia aqui não é apenas ambientação — é um estado de espírito.
Ao invés de oferecer respostas ou catarse, o filme se destaca por seu desconforto prolongado. Não há solução redentora à vista, apenas o prenúncio de que o ciclo de violência se sofisticará sob novas máscaras. A escolha do diretor de preservar o tom de fábula apocalíptica contido nos livros de Suzanne Collins revela uma aposta na inquietação como efeito duradouro. Em tempos de saturação de narrativas distópicas, a força de “Em Chamas” está na recusa em domesticar o horror. O que parece entretenimento juvenil é, na verdade, um manifesto camuflado: uma convocação à suspeita, à resistência, ao gesto mínimo de negar o espetáculo.
★★★★★★★★★★