A palavra “Cabrini”, para muitos, ainda ressoa entre as ruínas do conjunto habitacional Cabrini-Green, em Chicago — sinônimo de fracasso estrutural e abandono institucional. No entanto, poucos se lembram da mulher que inspirou esse nome: Frances Xavier Cabrini, imigrante italiana que, ao fim do século 19, transgrediu todos os limites impostos às mulheres — e especialmente às religiosas — para construir, tijolo por tijolo, uma rede global de acolhimento, saúde e educação. O filme “Cabrini”, de Alejandro Monteverde, não se limita a reconstituir esse percurso histórico; ele reorganiza nossa percepção do heroísmo ao colocá-lo não na excepcionalidade de milagres, mas na disciplina da insubmissão cotidiana. Nesse gesto, recupera-se uma figura cujo legado não cabe em ícones nem em devoções: uma mulher que, contrariando a lógica das hierarquias eclesiásticas e civis, reinventou o conceito de missão com base em planejamento, estratégia e resistência.
Ao contrário da imagem idealizada da santa beatificada, a Cabrini do filme é composta por fissuras e confrontos. Doente desde jovem e com traumas de afogamento que ainda a assombram, ela não é guiada pela passividade contemplativa, mas por uma inteligência que sabe ler o jogo de forças ao redor. Quando solicita ao Papa Leão 13 a oportunidade de evangelizar a China, é realocada a um orfanato em Nova York — uma “penitência disfarçada de missão”, como se quisessem que sua coragem se perdesse nos becos fétidos de Five Points. Mas é precisamente ali, em meio ao desprezo pelos italianos pobres, que Cabrini estrutura seu império de auxílio. Comandando uma equipe de mulheres ignoradas por todos os sistemas de poder, ela transforma cada espaço de ruína em semente de futuro. Sua resposta ao comentário do prefeito Gould — “Você teria sido um excelente homem” — não soa como frase de efeito, mas como reconfiguração de um paradigma: “Homens jamais fariam o que fazemos”. A provocação não é retórica; é empírica.
Rod Barr, roteirista também de “Som da Liberdade”, constrói a trajetória de Cabrini com notável domínio do contraste: o gesto político sempre esbarra em forças de contenção, e a benevolência gera reações violentas. O prefeito fictício Gould, o arcebispo Corrigan, o senador Bodio — todos são peças de um mesmo dispositivo de contenção simbólica. Mas ao reduzir Cabrini ao fracasso anunciado, esses homens revelam uma cegueira institucional: subestimam o poder de uma organização centrada no cuidado como força de transformação sistêmica. O filme evita transformar Cabrini em uma entidade sobre-humana. Em vez disso, atribui-lhe um tipo de heroísmo que nasce da tenacidade: angariar fundos, enfrentar burocratas, negociar com empresários, convencer cantores de ópera a cantar por uma causa. Cada uma dessas ações ganha corpo não pela sua grandiosidade, mas por fazer parte de um projeto que, passo a passo, reconfigura a cidade por dentro.
Visualmente, “Cabrini” recorre a uma estética que parece saudar os épicos religiosos de décadas passadas sem perder a densidade dramática dos tempos atuais. A fotografia de Gorka Gómez Andreu compõe imagens que evitam a idealização pictórica ao mesmo tempo em que constroem uma ambiência de reverência, quase sempre filtrada por uma luz que atravessa a sujeira das janelas como se rasgasse o tempo. Buffalo, onde boa parte do filme foi rodado, substitui Nova York com autenticidade surpreendente, permitindo que a ambientação abrace a decadência sem reduzi-la a cenário. A cena das crianças entoando “Va, pensiero” de Verdi, por exemplo, adquire contornos simbólicos: é a música de um povo escravizado reinterpretada por filhos da miséria, agora liderados por uma mulher cuja fé se traduz em pragmatismo. A emoção que ali se instala não nasce do sentimentalismo, mas da consciência de que beleza e luta são, muitas vezes, inseparáveis.
Há, ainda, uma dimensão narrativa frequentemente esquecida em cinebiografias religiosas: a política da memória. Em 1946, mais de cem mil pessoas reuniram-se para homenagear Madre Cabrini dois meses após sua canonização. No entanto, seu nome seria mais tarde ressignificado não por seus feitos, mas por um conjunto habitacional que se tornaria símbolo de desamparo. O filme, ao recuperar sua história, desafia essa inversão sem recorrer a didatismos. Ao contrário de “Som da Liberdade”, “Cabrini” não tenta mobilizar o espectador pela comoção escancarada, mas pela elaboração: sua denúncia está nas entrelinhas, na constatação de que o que ontem se chamava xenofobia hoje se mascara em discursos meritocráticos, e que o preconceito racial ou de classe apenas se atualiza sob novas formas. A violência contra os imigrantes retratada no filme, com suas analogias às tensões contemporâneas, força o espectador a reavaliar o presente — não como eco do passado, mas como continuidade.
“Cabrini” não busca ser um manifesto ideológico, mas tampouco se oculta sob a neutralidade. Sua proposta é mais radical: reposicionar a fé como prática social estruturante, e não como abstração moral. A espiritualidade de Cabrini não se manifesta em êxtases místicos, mas no enfrentamento dos impasses reais — fome, violência, misoginia, doença, exclusão. Ao final, o que resta não é a imagem da santa nos altares, mas da estrategista que soube transformar impotência em ação coletiva. É nesse gesto que o filme atinge sua dimensão mais relevante: sugerir que o heroísmo possível no mundo contemporâneo talvez esteja menos nas figuras excepcionais e mais naqueles que, à margem das estruturas, constroem alternativas reais com o que resta. E se ainda somos capazes de reverenciar uma mulher como Cabrini, talvez reste esperança de que os nomes que hoje evocam ruína voltem a significar esperança.
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