O filme da Netflix que todo mundo precisa ver para acalmar a alma Divulgação / Sony Pictures Classics

O filme da Netflix que todo mundo precisa ver para acalmar a alma

No coração de uma Londres literária e silenciosamente neurótica, um drama insólito se desenrola com a precisão de quem prefere observar à distância aquilo que o perturba. “A Senhora da Van” parece partir de uma anedota excêntrica — uma idosa decrépita que estaciona seu lar ambulante no jardim de um escritor recluso — mas seu gesto mais agudo é o de virar esse episódio quase cômico contra o próprio narrador. Alan Bennett, figura já conhecida por sua contenção emocional e ironia autoconsciente, se converte aqui em espelho fragmentado, dividido entre o homem que vive e o homem que escreve, entre o vizinho tolerante e o autor cínico que documenta a miséria com frases polidas. A chegada de Miss Shepherd — vestindo camadas de sujeira, impropérios e um orgulho inexplicável — rompe não só a estética tranquila do bairro de Camden, mas a narrativa bem-organizada que Bennett construiu sobre si mesmo. O que parece uma convivência passiva transforma-se, pouco a pouco, em campo de batalha moral, onde cada gesto, cada silêncio e cada concessão se tornam prova de algo que o autor preferia manter enterrado.

Nicholas Hytner, parceiro constante de Bennett e diretor com notável domínio da contenção como linguagem, escava nessa relação uma dramaturgia sem adornos, onde o ruído está menos nas palavras trocadas e mais nas omissões gritantes. A escolha de filmar no próprio local onde os eventos ocorreram confere ao filme uma materialidade incômoda, quase documental, que sublinha o paradoxo da permanência indesejada. Miss Shepherd — interpretada por Maggie Smith com uma força interpretativa que recusa sentimentalismos — não está ali para ser personagem coadjuvante da trajetória de Bennett. Ela é uma presença que exige do escritor, e de todos ao seu redor, muito mais do que tolerância estética ou gestos episódicos de bondade. Sua recusa constante em ser domesticada ou interpretada é justamente o que a transforma na figura mais misteriosa em cena. E é esse mistério — não a compaixão — que perturba Bennett profundamente, pois o obriga a enfrentar o limite de sua própria empatia encenada.

Ao optar por dividir seu protagonista em duas versões — o Bennett da vida prática e o Bennett literário —, o roteiro faz mais do que um truque de mise-en-scène: ele revela a cisão entre o sujeito e sua consciência. O primeiro tenta ser funcional, discreto, um vizinho civilizado que acolhe a van com relutância polida. O segundo, sarcástico e implacável, converte a invasora em metáfora viva de sua impotência social e afetiva. Essa duplicação não serve apenas ao humor britânico fino que permeia a narrativa, mas à revelação progressiva de que a verdadeira disputa não é com a senhora da van — é com aquilo que ela obriga Bennett a enxergar: a incapacidade de agir sem transformar o outro em enredo. E é nesse ponto que “A Senhora da Van” transcende o campo do drama biográfico e se aproxima de uma autoacusação travestida de sátira. Miss Shepherd não é apenas uma personagem estranha. É o desconforto que persiste, que ocupa espaço, que não permite ser convertido em crônica inofensiva.

Maggie Smith opera nesse território ambíguo com uma maestria que só se revela em retrospecto. Sua Miss Shepherd jamais implora por piedade. Ela é ríspida, contraditória, devota, racista, espirituosa, paranoica e, sobretudo, inacessível. É essa opacidade que torna sua figura tão devastadora: ela se nega a cumprir qualquer função simbólica que o roteiro queira impor. Quando aceita um crème brûlée de uma vizinha, o faz com o mesmo desprezo altivo com que responde a policiais ou a gestos religiosos. Ela carrega em si a ruína de algo maior, que nunca é explicado, apenas intuído — uma tragédia antiga, um erro irreparável, uma perda que a isolou do mundo. O roteiro permite vislumbres desse passado, mas nunca o entrega de forma definitiva. O que importa não é a resolução da personagem, mas sua resistência em ser explicada. Smith capta isso com precisão: sua atuação é um campo de tensão entre autoridade e fragilidade, entre lucidez e delírio. O espectador ri, se incomoda, se enternece — mas nunca se sente seguro.

Esse embate silencioso entre a personagem indomável e o narrador fragmentado torna “A Senhora da Van” um estudo sobre o que significa conviver com o irredutível. O bairro de Camden, com suas casas de intelectuais progressistas, funciona como uma alegoria da falsa generosidade: todos toleram Miss Shepherd como quem carrega uma insígnia moral, mas desejam, em segredo, sua partida. O filme observa esse contraste com o rigor de quem se recusa a emitir julgamento fácil. Cada personagem secundário serve como contraponto à tentativa de Bennett de encontrar lógica na presença da mulher em sua vida. A vizinha que a usa como instrumento pedagógico, o casal que murmura sua impaciência, a senhora aristocrática que a enxerga como fardo sagrado — todos revelam, em sua relação com Miss Shepherd, muito mais sobre si mesmos do que sobre ela. E é aí que o filme atinge um nível raro de profundidade: ao sugerir que o verdadeiro tema não é a senhora da van, mas a maneira como lidamos com aquilo que não se encaixa nas narrativas confortáveis que construímos para explicar a realidade.

A resolução aparente da história — com a revelação tardia de fragmentos do passado de Miss Shepherd — poderia funcionar como chave interpretativa para o filme. Mas a escolha artística mais potente está em frustrar esse impulso explicativo. Ao recusar o fechamento típico de arcos dramáticos, o roteiro reforça a natureza irresoluta da figura central. Não se trata de entender quem foi Mary Shepherd, mas de reconhecer que há existências que desafiam qualquer estrutura narrativa. E é nesse ponto que a arte de Maggie Smith atinge sua plenitude: ela não interpreta uma mulher derrotada, mas uma presença que se impõe justamente por não ceder. O filme termina como começou — com um desconforto que se arrasta, com perguntas que permanecem sem resposta, com um personagem que continua a observar em vez de agir. E, ao fazer isso, “A Senhora da Van” revela o que talvez seja seu gesto mais profundo: não oferecer uma lição, mas exigir do espectador — como exigiu de Bennett — algo mais raro do que compreensão. Exigir silêncio.

Filme: A Senhora da Van
Diretor: Nicholas Hytner
Ano: 2015
Gênero: Biografia/Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★