Atravessar os entulhos da desigualdade racial nos Estados Unidos é, em essência, enfrentar um campo minado de contradições institucionais. Entre o discurso universalista da democracia e a prática reiterada de exclusão, a polícia — cujo papel deveria ser o de garantir segurança e equidade — tantas vezes se revela uma engrenagem ativa de opressão. No início da década de 1970, esse descompasso transbordava também no sistema educacional. A resistência histórica à integração racial nas escolas da Carolina do Norte expôs não apenas o racismo escancarado de seus opositores, mas uma crença profundamente arraigada na suposta inferioridade intelectual dos estudantes negros — uma ideia sustentada não por mérito, mas pela sabotagem histórica que os confinava à precariedade e ao silêncio institucionalizado. O caso que se desenrolou em East Durham se tornou um palco de segregação, ainda que disfarçado de argumento lógico, revelou sua natureza real: um projeto deliberado de manutenção da desigualdade.
Robin Bissell mergulha nesse terreno espinhoso com um gesto que, à primeira vista, parece incerto, mas que vai se desdobrando com precisão. Seu filme, “O Melhor dos Inimigos”, inicia em meio a um caos visual que quase sabota a densidade do que se propõe a narrar — como se a urgência da violência abafasse o que de mais crucial está em jogo. No entanto, à medida que a história se estrutura, Bissell desvia do espetáculo fácil e articula uma construção que valoriza o conflito ético e social, evitando o apelo sensacionalista que tantas vezes esvazia o cinema político. Sua maior ousadia talvez seja essa: recusa a catarse vazia para, em seu lugar, oferecer a fricção de ideias, a complexidade das alianças improváveis e o desconforto necessário de quem se vê obrigado a compensar a própria posição no mundo.
É nesse ambiente que se ganha corpo a aliança impossível entre Ann Atwater, mulher negra de coragem indomável, e CP Ellis, um homem branco moldado por décadas de ódio, ambos forjados em trincheiras opostas da mesma guerra. A encenação de Taraji P. Henson e Sam Rockwell não busca a conciliação simplista, mas tensiona cada avanço, expondo as rachaduras morais de seus personagens com uma cruz que torna o filme mais incômodo e, por isso mesmo, mais honesto. A introdução de Bill Reddick, figura mediadora vívida com solidez por Babou Ceesay, não serve de quebra, mas de acontecimentos para os dilemas que se acumularam nas assembleias comunitárias — as chamadas charrettes — que definiriam o futuro educacional de uma cidade fraturada. O incêndio numa escola de maioria negra, longe de ser mero incidente, é o estopim que obriga brancos e negros a confrontarem suas escolhas, seus preconceitos e, sobretudo, suas omissões.
A inflexão dramática que transforma Ellis de segregacionista condenado a defensor da integração escolar, embora dramatizada com certo design, não é mero recurso melodramático. Representa o tipo de conversão que inquieta mais do que conforta, justamente porque obriga o espectador a lidar com a plasticidade das pessoas humanas. A ocorrência negativa de que a narrativa provoca em parte da crítica — acusando-a de reforçar o estereótipo do branco redentor — revela, na verdade, um recebimento legítimo de que histórias como essa podem escorregar para a complacência. Mas ignorar a possibilidade de transformação radical também seria incorreto na mesma simplificação que se pretende criticar. A força de “The Best of Enemies” reside, em parte, nessa zona de tensão: ao expor o abismo, ousa imaginar que ele pode, ainda que com tropeços, ser atravessado.
Reduzir o debate à pele de quem dirige ou protagoniza é restringe a arte ao literal, como se a experiência da alteridade fosse monopólio da vivência direta. É nesse ponto que a análise se enriquece: ao recusa tanto o paternalismo salvacionista quanto a patrulha identitária como destinos únicos. Se o filme de Bissell traz um homem branco como pivô de mudança, não o faz para diminuir o papel de Atwater, mas para mostrar como o racismo também corrompe seus beneficiários. A questão não é quem carrega o padrão da justiça, mas se ele é erguido com coragem e consciência. Afinal, nas sociedades democráticas, o racismo não é problema de um grupo, mas ferida coletiva que exige coragem compartilhada para ser estancada.
Talvez o maior risco de obras seja justamente o de serem lidas por atalhos ideológicos, que, na ânsia por coerência identitária, desconsideram a complexidade do que está sendo encenado. O mérito do filme é não escamotear essas ambiguidades, permitindo que a história seja, ao mesmo tempo, denúncia e convite. Denúncia de um país que, mesmo autoproclamado terra da liberdade, insiste em estabelecer posições humanas; convite à reflexão sobre o quanto de cada um de nós ainda é compacto, em silêncio ou inércia, com as muitas formas de exclusão que persistem. Porque a verdadeira ameaça à justiça racial não é apenas na violência explícita, mas também nos argumentos bem vestidos que a justificam. E é nesse campo minado que “The Best of Enemies” pisa — sem garantias, mas com pertinência.
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