O melhor filme de ação que você verá esta semana acaba de chegar à Netflix Divulgação / Columbia Pictures

O melhor filme de ação que você verá esta semana acaba de chegar à Netflix

Quando se observa o lugar que a mulher ocupa hoje nas estruturas de poder, é possível identificar nesse avanço uma das expressões mais simbólicas das rupturas culturais ocorridas nas últimas décadas. Até tempos não tão remotos, o acesso ao comando de instituições por figuras femininas era uma fantasia com contornos de ficção científica — uma imagem tão improvável quanto a de um alienígena de antenas reluzentes no topo de uma empresa. No entanto, o que antes era exceção tornou-se rotina: mulheres lideram com desenvoltura conglomerados, bancos, startups, órgãos públicos, e o fazem não por deferência, mas por competência. Essa transição, porém, não decorreu de concessões benevolentes, mas da persistência de uma luta silenciosa, travada por quem sempre teve que provar o dobro para receber a metade. O controle sobre o próprio corpo, possibilitado em parte pelo acesso a métodos contraceptivos, deu início a um processo de autonomia que se expandiu em todas as direções. De donas de casa a donas de si, a trajetória foi longa — e está longe de terminar.

A construção desse novo paradigma feminino foi intelectualmente sedimentada por vozes como a de Simone de Beauvoir, que, em vez de se limitar a denunciar a opressão, delineou com precisão as armadilhas simbólicas que mantinham as mulheres cativas de expectativas alheias. Com “O Segundo Sexo”, ela desvelou os códigos invisíveis de uma sociedade moldada para os homens, enquanto em “A Mulher Desiludida” expôs as rachaduras íntimas provocadas por casamentos que prometiam tudo e entregavam o vazio. As reflexões da pensadora francesa continuam ecoando, ainda que travestidas de entretenimento ligeiro, em produções que, sob o verniz pop, deixam entrever embates que transcendem a superfície. O novo “As Panteras”, sob a direção de Elizabeth Banks, caminha nesse terreno ambíguo. Não se propõe a ser manifesto, tampouco tese acadêmica, mas no fundo de suas cenas acrobáticas habita uma recusa clara à caricatura das heroínas hipersexualizadas que fizeram a fama da franquia.

Ao escalar mulheres para os postos de protagonismo e comando criativo, o filme já opera uma inversão simbólica de seus antecessores. Elizabeth Banks, ao assumir o leme, imprime ao roteiro — escrito por ela, Evan Spiliotopoulos e David Auburn — uma tentativa de atualizar os códigos narrativos para um público menos tolerante às fórmulas desgastadas. A vigilância crítica da sociedade contemporânea quanto à representação de gênero impõe aos realizadores o desafio de manter o apelo comercial sem incorrer em retrocessos éticos. Nesse sentido, o longa busca equilibrar ação e responsabilidade simbólica. O figurino assinado por Kym Barrett e a caracterização de Camille Friend ajudam a reforçar a força visual da produção, com uma paleta vibrante que evita tanto a objetificação quanto o apagamento da individualidade das personagens. Trata-se de uma reinvenção que sabe jogar com os elementos do passado, mas sem nostalgia ingênua.

O trio central — interpretado por Kristen Stewart, Ella Balinska e Naomi Scott — rompe com os estereótipos mais persistentes da série original e de suas encarnações cinematográficas anteriores. Nada de cenas ensaboadas saídas do mar ou flertes utilitários com vilões de ocasião. Aqui, a sensualidade cede espaço à estratégia, e o charme, antes obrigatório, é substituído pela inteligência operacional. Stewart, com sua ironia blasé, injeta carisma na figura de Sabina Wilson, que abre o filme com uma sequência magnética ao lado de Chris Pang. Balinska encarna Jane Kano com um rigor físico notável, entregando precisão e domínio técnico sem perder nuances emocionais. Já Naomi Scott, em sua construção quase ingênua de Elena Houghlin, atua como o ponto de entrada do espectador nesse universo de espionagem, como se sua personagem ainda estivesse aprendendo a decifrar as regras de um jogo no qual as outras já são veteranas.

Esse contraste entre experiência e descoberta alimenta uma dinâmica interna interessante: não se trata apenas de mulheres que combatem o crime, mas de mulheres que aprendem, ensinam e se reorganizam frente às traições e obstáculos que lhes são impostos. A decisão de preservar uma estética leve, às vezes quase caricatural, não impede o filme de tocar, mesmo que tangencialmente, em temas como confiança, lealdade e manipulação — todos atravessados por questões de poder. Nesse campo de tensão, o personagem de Patrick Stewart, John Bosley, se impõe como figura central. Sua ambiguidade funciona como contraponto ao entusiasmo juvenil das Panteras, introduzindo uma camada de desconfiança e tensão dramática que impede o roteiro de se tornar apenas uma sucessão de explosões coreografadas.

Não é preciso que um filme levante bandeiras explícitas para participar das transformações culturais de seu tempo. “As Panteras” de Elizabeth Banks talvez não ambicione esse papel, mas acaba assumindo-o quase por gravidade. Ao evitar recaídas na fórmula das “espiãs sexies” e ao investir em protagonistas que não precisam validar sua força por meio do desejo masculino, a produção revela o quanto o entretenimento pode ser um território de disputa simbólica. Mesmo quando tropeça na duração excessiva ou na previsibilidade de algumas cenas, há uma intuição acertada no centro do projeto: a de que o heroísmo feminino não precisa ser explicado nem justificado — apenas encenado com respeito e convicção.

Essa releitura do clássico televisivo pode até não revolucionar o gênero, mas fornece matéria suficiente para pensar os caminhos possíveis da representação feminina no cinema de ação. Ao deixar de lado as fórmulas saturadas e buscar uma identidade própria, o longa aponta para uma maturidade narrativa que vai além das armas e das perseguições. Na contramão dos clichês que ainda infestam tantas produções do gênero, “As Panteras” reconstrói suas protagonistas não como mitos inalcançáveis, mas como mulheres que erram, reagem e, sobretudo, escolhem. E é nessa liberdade de escolha que reside a sua força mais silenciosa — e também mais transformadora.

Filme: As Panteras
Diretor: Elizabeth Banks
Ano: 2019
Gênero: Ação/Aventura/Comédia
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★