A última história de Shakespeare virou filme — e acaba de chegar à Netflix Robert Youngson / Sony Classics

A última história de Shakespeare virou filme — e acaba de chegar à Netflix

Em vez de se contentar com o aplauso passageiro que o prestígio teatral poderia lhe conceder, Kenneth Branagh parece compelido a frequentar os bastidores mais sombrios da criação dramática. Há décadas, sua relação com Shakespeare tem menos de reverência e mais de inquietação: um duelo intelectual com um espectro incansável. O que o move, na verdade, é uma tentativa febril de traduzir o inatingível, como se habitar a mesma terra natal e portar feições semelhantes ao Bardo lhe outorgassem acesso a uma memória emocional oculta, compartilhada. Nessa jornada, Branagh não busca apenas compreender o dramaturgo: ele o interroga com um misto de temor e intimidade, como quem reconhece no outro a extensão mais perigosa de si mesmo — o artista devastado pelo próprio dom. O que se insinua, portanto, não é um tributo, mas uma vivissecção — de Shakespeare e do próprio Branagh, que talvez enxergue nesse espelho trincado o destino inevitável de quem ousa pensar em voz alta demais.

“A Pura Verdade” se estrutura como um gesto quase arqueológico: desenterrar uma versão do poeta não consagrada pelos biógrafos, mas intuída pelos silêncios que sua obra nunca verbalizou. O incêndio que irrompe durante uma encenação de “Henrique 8”, quando um canhão cenográfico provoca a destruição parcial do Globe Theatre, não é apenas o início factual da narrativa — é o marco simbólico de uma ruína interior. O Shakespeare de Branagh assiste àquele teatro arder como quem vê o próprio ímpeto criativo consumir-se em chamas, sem possibilidade de ressurreição. A imagem do corpo escurecido em contraste com o fogo que devora seu templo dramatúrgico condensa, com precisão assombrosa, a cisão entre a potência passada e a impotência presente. A partir daí, o roteiro de Ben Elton se torna menos interessado no que realmente aconteceu e mais seduzido pelas possibilidades do que poderia ter acontecido com um homem genial confrontado com a falência definitiva de sua inspiração.

Ao optar por ficcionalizar a derrocada criativa do maior nome do teatro ocidental, Branagh se afasta dos arquivos e se aproxima da angústia. Sua câmera não busca confirmar datas ou refutar versões, mas registrar as pulsações de uma alma em dissolução. Mais do que uma biografia, o filme se configura como um inventário emocional — não de feitos, mas de restos. A morte de Hamnet, filho do autor e possível embrião do trágico Hamlet, serve de catalisador para uma espiral de culpa, perda e dissociação. Com esse gesto, o cineasta estabelece uma das conexões mais dolorosas do longa: o fracasso de Shakespeare enquanto pai ressoa no silêncio de sua criação tardia, e a ausência de um herdeiro passa a simbolizar o colapso de seu legado. Branagh não denuncia, mas contempla: o gênio artístico não o redime de sua mediocridade doméstica. Pelo contrário, a amplifica.

O relacionamento com Anne Hathaway, vivido com contenção algo estática por Judi Dench, é retratado como um pacto de sobrevivência que se tornou insustentável. Não há gritos nem rompantes, apenas o desgaste corrosivo da convivência marcada por ausências e silêncios que engolem palavras antes mesmo que sejam ditas. Ainda que Dench se contenha demais, quase congelada numa estóica melancolia, há algo de deliberado nessa escolha: sua personagem parece saber que qualquer súplica seria inútil diante de um marido que não está presente nem quando está ao seu lado. A tensão, portanto, não vem do confronto, mas daquilo que se cala. A mulher do poeta torna-se, ironicamente, seu mais impiedoso texto não escrito — uma personagem que ele jamais ousou desenvolver.

Mesmo quando cede à tentação de oferecer ao espectador uma resolução redentora — recurso próximo de uma benesse narrativa — Branagh não destrói a arquitetura emocional que construiu até ali. O final pode soar indulgente, quase escapista, mas funciona como um alívio calculado, e não como traição ao drama. Se há algo farsesco na composição derradeira, ele serve mais como cortina que se fecha do que como solução catártica. Afinal, o teatro, para Shakespeare, sempre foi o lugar onde se permitia mentir com elegância. Branagh honra esse legado — e, ao fazê-lo, cria um filme que mais do que revisitar a história, a reimagina como ferida aberta. A verdade que ali se insinua talvez nunca tenha sido pura. Mas é precisamente essa impureza que a torna tão próxima de nós.

Filme: A Pura Verdade
Diretor: Kenneth Branagh
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ficção Científica
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★