Filme com Tom Hanks que acolhe sua dor sem pressa, sem julgamento — só com amor. Está na Netflix Lacey Terrell / Sony Pictures Entertainment

Filme com Tom Hanks que acolhe sua dor sem pressa, sem julgamento — só com amor. Está na Netflix

Num tempo em que a comunicação virou trincheira e a linguagem, munição, talvez o gesto mais radical seja o de falar com delicadeza — e, mais ainda, de escutar com genuína atenção. Não se trata de nostalgia ingênua nem de idealização romântica: há, de fato, uma violência estrutural nas formas como aprendemos a existir juntos. Diante disso, há quem proponha uma resistência sem grito, um combate sem armadura. Um gesto tão simples quanto complexo: ensinar às crianças — e, por osmose, a seus pais — que há outra maneira de estar no mundo. Uma pedagogia da escuta, da gentileza, da empatia como prática cotidiana. O fato de isso ter sido posto em prática, televisionado e amado, e depois silenciado, diz muito sobre quem éramos — e sobre quem nos tornamos. É possível que aquele menino que acreditava na bondade tenha crescido ressentido, reproduzindo a frieza que um dia tentou dissolver. E, na repetição cega da dor herdada, tenha educado novos arautos da brutalidade. Sobram ruínas emocionais. E a memória incômoda de que a esperança, certa vez, teve nome, endereço fixo e horário na televisão pública.

Foi exatamente essa memória que Marielle Heller tentou reativar em 2020, como quem acende um fósforo dentro de um túnel. O filme encena mais do que a biografia de um apresentador excêntrico: é a reconstrução sensível de uma ideia em extinção — a de que uma presença afetuosa, ainda que mediada por uma tela, pode ser revolucionária. A produção se inspira em “Mister Rogers’ Neighborhood”, exibido por mais de três décadas pela PBS, e estende sua essência para além da reconstituição histórica. Heller evita a armadilha do didatismo e propõe uma dramatização rarefeita, quase litúrgica, onde cada gesto é carregado de um sentido que o tempo acelerado de hoje já não consegue decodificar. É uma espécie de evocação de uma linguagem emocional esquecida, encarnada por Tom Hanks em um desempenho que se recusa ao protagonismo tradicional: sua atuação não se impõe, mas irradia. É o vazio de certezas, a antítese do herói clássico. Ao seu redor, gira um repórter cético, escolhido para escrever um perfil que, aos poucos, se revela um espelho involuntário de suas próprias feridas.

Matthew Rhys compõe Lloyd Vogel como um homem assombrado por sua própria incapacidade de confiar — no outro, na infância, em si mesmo. Não por acaso, sua reação ao otimismo metódico de Rogers é a hostilidade: quem nunca sentiu repulsa diante de uma bondade que não se pode compreender? As melhores passagens do filme não se sustentam em reviravoltas narrativas, mas na erosão lenta das defesas emocionais do jornalista, que vê seu cinismo ser desmontado peça por peça, não por argumentos, mas pela força do exemplo. A inteligência do roteiro está em inverter, com suavidade cirúrgica, os papéis da entrevista: o entrevistado vira terapeuta, provocador, quase um psicanalista disfarçado de vizinho. E enquanto Lloyd tenta manter o controle, é Rogers quem guia a conversa para os vazios que o outro preferiria manter lacrados. O passado familiar do repórter, em especial a relação mal resolvida com o pai, ressurge como uma sombra que precisa ser nomeada. E é nessa zona de vulnerabilidade que o filme ganha sua potência emocional.

Marielle Heller parece ter desenvolvido um fascínio especial por figuras reais marcadas por um tipo de dissidência emocional. Se em “Poderia Me Perdoar?” ela mergulhou na amargura farsesca de Lee Israel, aqui ela percorre o caminho oposto: investiga um homem que decidiu habitar a doçura até as últimas consequências. A diferença não está no método, mas na temperatura. Fred Rogers, interpretado com imperturbável doçura por Hanks, não é retratado como santo ou mártir, mas como alguém que, consciente da própria excentricidade, escolheu cultivá-la como ponte com o mundo. O filme é rigoroso em manter o tom entre a fabulação e a realidade, flertando com uma atmosfera quase onírica, onde os cenários da PBS funcionam como espaços de rito, onde cada objeto tem valor simbólico — dos títeres às maquetes urbanas que evocam distâncias físicas e emocionais. A fotografia colabora com essa imersão sensorial, oscilando entre luz e sombra conforme o estado interno dos personagens. Não se trata de estética; é linguagem emocional em estado puro.

Esse jogo de contraste entre escuridão e luz estrutura toda a narrativa. Lloyd, sozinho, é um corpo em luto antecipado, engolfado por silêncios mal resolvidos. Rogers, quando entra em cena, não dissipa as trevas — ele apenas as torna visíveis. A direção de arte, minuciosa, transforma cada espaço em campo de significados. A delicadeza não está apenas no discurso, mas no cuidado com os detalhes: um boneco, um gesto, uma troca de sapatos. É como se o filme todo sussurrasse: preste atenção, isso importa. E, de fato, importa. Porque mais do que a história de um encontro improvável, o que se vê é uma pequena demonstração de que a escuta pode ser o único ato verdadeiramente transformador. A amizade que se constrói entre aqueles dois homens não nasce da identificação, mas da disposição para atravessar os abismos que os separam. E, nessa travessia, não há fórmulas — apenas presença.

Mas é fora da tela que se revela a dimensão mais perturbadora da experiência: perceber que Fred Rogers existiu mesmo. Que alguém foi, de fato, tão coerente com sua mensagem, sem manchas ocultas nem perversões abafadas. Num mundo que parece funcionar à base da duplicidade, essa integridade radical soa quase ofensiva. Pesquisar sua vida e não encontrar escândalos, acusações, desvios ou cinismos ocultos é um alívio desconcertante. Como se, de repente, a realidade se curvasse à fantasia e dissesse: sim, isso é possível. Saber que morreu de câncer aos 74 anos é uma notícia que dói não pelo fim, mas pela ausência. Ele fazia falta antes mesmo de partir. E talvez, de maneira silenciosa, tenha escolhido desaparecer antes que o mundo se tornasse completamente impermeável àquilo que ele mais defendia: a ternura.

Filme: Um Lindo Dia na Vizinhança
Diretor: Marielle Heller
Ano: 2020
Gênero: Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★