Viver em sociedade acaba sendo um contumaz enfrentamento entre o bem e o mal, raciocínio perigosamente maniqueísta, eivado de reducionismo e preconceitos de toda ordem, que, não obstante, mira a conclusão, óbvia e lamentável, de que o segundo quase sempre triunfa sobre o primeiro. Fazer um esforço genuíno para compreender o outro, desarmadamente, sem receio de ser tido por fraco, regalar o que sofre com um olhar de bondade que seja, ceder ao impulso esmagador de colocar sua própria opinião acima dos fatos e da vontade de dominar o mundo exige de nós tamanho sacrifício que é como se tivéssemos de embarcar num trem mágico com destino a uma dimensão paralela, precisamente o lugar onde se desenrola aquela vida, estranho território no qual circunstâncias para nós as mais absurdas são o que pode haver de mais prosaico.
Crianças vítimas de abusos dinamitam até o mais empedernido dos corações, e “Som da Esperança: A História de Possum Trot” não sossega enquanto não faz derramar ao menos uma lágrima, a reação mais natural diante do que se vê na tela. A mais recente produção do Angel Studios, também responsável pelo avassalador (e muito lucrativo) “Som da Liberdade” (2023), do mexicano Alejandro Monteverde, reconstitui a trajetória de WC Martin, um reverendo batista do Texas, e sua esposa, Donna, que depois de uma perda resolveram que era hora de aprimorar a fé e fazer alguma coisa pelas crianças vulneráveis de Possum Trot, uma pequena comunidade na fronteira com a Louisiana. Sem nenhum medo de patrulha, Joshua Weigel discorre sobre um assunto sério, mas encontra margem para leveza e, claro, confiança no futuro e no gênero humano.
Na verdade, a protagonista dessa história é Donna. É ela quem decide adotar dois meninos e duas meninas quando da morte da mãe, uma afro-americana que criou sozinha catorze filhos numa tapera de madeira, sem luz, água ou aquecimento. Bem diferente doa televangelistas que se proliferaram mundo afora do princípio dos anos 1980 para cá, Donna e WC não são milionários, e isso, por óbvio, pesou na hora de avaliar se poderiam ou não oferecer a estrutura necessária aos novos membros da família, ainda que, em se colocando tudo na balança, essa acabe sendo a menor das preocupações.
Weigel e a esposa Rebekah — eles mesmos pais de quatro filhos adotivos, além dos dois biológicos, e cinco de criação —, chegam ao argumento mirando Terri, uma adolescente de quinze anos recorrentemente estuprada pelos companheiros da mãe dependente química, e mandada para a casa da senhora Nolan, até que uma agência do governo pudesse lhe oferecer um lar definitivo. Quem cuida da burocracia kafkiana é Susan Ramsey, a assistente social vivida por Elizabeth Mitchell, que julga um maravilhoso absurdo o propósito da esposa do reverendo quanto a encampar um programa oficial de adoção entre os moradores de Possum Trot, mas faz a ponte entre as autoridades e a povo, numa prova viva de que soluções inteligentes para nós górdios da pós-modernidade nem sempre custam caro. Em muitas circunstâncias, boa vontade importa mais.
O segundo ato é todo para destrinchar a convivência de Terri e os Martin, e Weigel entra num terreno ainda mais pantanoso ao abordar a zooantropia da garota, adquirida no lar temporário. O delírio que a leva a querer e pensar ser um gato é tratado de modo instintivo, amoroso, mas firme, por WC, dando azo a sequências de humor involuntário e politicamente incorreto, que preparam o espectador para uma camada mais densa da narrativa. “Som da Esperança” ganha aura de verdadeira obra de arte ao conservar-se intransigente em sua escolha de evidenciar as dificuldades de adaptação de Terri e seus novos pais, e o tripé constituído pelas atuações marcadas de boas surpresas de Nika King, Demetrius Grosse e Diana Babnicova sustentam o longa até o desfecho, quando os verdadeiros WC e Donna Martin surgem na tela, à guisa de incentivo para que seu sonho viva em outras pessoas. À diferença da pusilânime acusação de fanatismo atribuída ao trabalho de Monteverde, “Som da Esperança: A História de Possum Trot” é um enredo superior a ideologias ou credos, feito para quem se dói das dores dos outros. Sobretudo quando o outro está tão longe.
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