O fascínio persistente de “O Conde de Monte Cristo” não se deve apenas à engenhosidade de sua trama ou à eloquência de sua prosa. O que mantém o romance de Alexandre Dumas no centro do imaginário ocidental por quase dois séculos é a sua anatomia implacável do ressentimento, da justiça e da autodestruição moral. Na nova adaptação dirigida por Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte, essa dimensão ética não apenas permanece: ela se intensifica, se adensa, e, em muitos momentos, ofusca até mesmo a exuberância estética da produção. O que vemos em tela é menos uma narrativa de revanche e mais uma dissecação brutal das consequências de se viver para castigar. A história se ancora em um protagonista que, ao perseguir obsessivamente os escombros da própria honra, gradualmente se desintegra — não em gestos ou ações, mas no esvaziamento de sua própria identidade.
A construção visual que os diretores empregam para dar corpo a essa trajetória é, por si só, uma declaração de princípios. A sequência inaugural, com a tempestade marítima, o navio em chamas e a escolha fatal de Dantès por desobedecer uma ordem em nome de um princípio, já condensa os paradoxos que atravessarão toda a narrativa. A ética se torna armadilha; o heroísmo, punição. É essa inversão que deflagra o colapso. Na prisão de Château d’If, a injustiça não se limita a uma condenação física: ela impõe um tipo de pedagogia sombria, onde a violência sistemática funciona como escola para a perversidade futura. Não é à toa que Dantès aprende, justamente com o abade Faria, a mapear labirintos — tanto os subterrâneos quanto os da alma humana. O tesouro que o mentor promete vai muito além do ouro: é a permissão simbólica para reconstruir-se como entidade estratégica, sem vísceras, sem hesitação, e, principalmente, sem limites.
A metamorfose que se segue não é glorificada — ela é observada com a frieza de um bisturi. Ao reencarnar como conde, Dantès atravessa uma espécie de rito secular que o insere entre os deuses da manipulação. Sua inteligência é cortante, sua execução, cirúrgica, e seu carisma, venenoso. Ainda assim, La Patellière e Delaporte não embarcam na celebração do gênio vingador. Ao contrário, o filme repudia qualquer fetichização da vingança ao expor, com paciência clínica, os danos colaterais de cada movimento. É nos detalhes — um olhar frio diante de uma súplica, um gesto calculado mesmo nos reencontros amorosos — que se evidencia a erosão emocional do personagem. Cada vitória sobre seus algozes representa também um degrau a mais no esvaziamento de suas antigas virtudes. O castigo se dá para fora, mas a mutilação é interna — e irrecuperável.
Ao preservar o vigor das tramas de capa e espada e, simultaneamente, injetar nelas uma densidade filosófica rara em adaptações do gênero, o longa realiza uma operação narrativa sofisticada. Pierre Niney, com uma atuação de múltiplas camadas, ocupa esse espaço liminar entre idealismo e crueldade sem jamais permitir que o espectador se acomode em uma leitura unilateral. Sua relação com Mercédès — motor afetivo de sua juventude e ferida não cicatrizada de seu retorno — é reposicionada de forma incisiva: ela deixa de ser apenas o símbolo da mulher perdida para tornar-se espelho daquilo que ele deixou de ser. Nos diálogos contidos, nos silêncios longos e na artificialidade de seus reencontros, está a constatação mais cruel: não há caminho de volta possível quando se atravessa o deserto moral do revide absoluto. É nesse confronto íntimo, sem espada ou pólvora, que Dantès se revela enfim derrotado.
A grandiosidade técnica da produção — a fotografia precisa de Nicolas Bolduc, os figurinos de Thierry Delettre, os ambientes coreografados com a precisão de um jogo de xadrez — não se impõe como distração, mas como suporte à tensão existencial que permeia o enredo. A estética não compete com a ética, mas a potencializa. Mesmo nos momentos em que a narrativa flerta com o espetáculo — os duelos, os bailes mascarados, as perseguições em corredores opulentos —, o que permanece em foco é a erosão interna do protagonista. O brilho dos cenários apenas acentua o vazio que cresce no interior do conde, e a sofisticação dos disfarces apenas ressalta o abandono irreversível de qualquer autenticidade emocional. Se há uma crítica implícita ao esvaziamento da figura do herói no cinema contemporâneo, ela se faz por contraste: enquanto Hollywood se rende a arquétipos previsíveis, esta adaptação francesa se compromete com a complexidade — e, portanto, com a tragédia.
É nesse compromisso com a complexidade que reside o gesto mais radical da obra. A narrativa recusa qualquer forma de fechamento redentor. Não há reconciliação, não há alívio. Quando Dantès declara que desistir da vingança seria perder aquilo que o mantém vivo, o filme não o contesta diretamente — mas também não o valida. O olhar da câmera, os silêncios dos diálogos, os gestos interrompidos: tudo indica que o protagonista já perdeu muito antes de concluir seu plano. E o que perdeu não foi só a juventude, o amor ou a liberdade, mas algo mais difícil de nomear — talvez a capacidade de se reconhecer nos próprios atos. É exatamente aí que La Patellière e Delaporte transformam um épico conhecido em um artefato de desconforto intelectual. “O Conde de Monte Cristo”, sob a ótica dessa adaptação, não é uma saga de vitória, mas um tratado sobre a farsa que se instala quando a justiça é sequestrada pelo orgulho ferido. Um filme que, ao invés de encerrar sua história, ecoa — como as promessas não cumpridas, como os silêncios que ninguém se atreve a quebrar.
★★★★★★★★★★