Mais de um ano no Top 10 da Apple TV+: o filme que provou que Scorsese nunca erra

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Em vez de posicionar “Assassinos da Lua das Flores” como mero épico histórico sobre ganância e violência, Martin Scorsese propõe uma dissecação sombria da lógica de dominação disfarçada de civilidade. Ao eleger como protagonista Ernest Burkhart, figura medíocre e manipulável, o diretor não explora a ascensão de um vilão, mas o esvaziamento moral de um homem comum. Ernest não compreende o alcance dos crimes que perpetra porque nunca lhe foi exigido compreender — ele apenas segue. Ao redor dele, a engrenagem colonial avança com eficiência meticulosa, transformando casamentos em contratos de espoliação e afetos em instrumentos de saque. A escolha por narrar a tragédia sob a ótica de quem a provoca e não de quem a sofre não é uma simples omissão de perspectiva: é uma chave de leitura que revela o quanto a naturalização do mal depende, precisamente, de que ele seja contado pelos seus próprios agentes.

Ao retratar a Fairfax dos anos 1920, Scorsese evoca um cenário em que o delírio da modernidade industrial colide com a espiritualidade ancestral dos povos originários. A riqueza do petróleo — administrada sob tutela federal como se os Osage fossem incapazes de geri-la — atrai parasitas que, com o respaldo das instituições, esculpem a violência na rotina. O personagem de William Hale, interpretado com uma ambiguidade inquietante por Robert De Niro, encarna o predador ideal: paternalista, calculista, imune ao remorso. Sua fala mansa oculta uma lógica de extermínio estruturado. Já Lily Gladstone, como Mollie, resiste sem retórica. Sua atuação não impõe grandiloquência: ela respira uma dignidade contida que, por isso mesmo, impõe-se com força incomum. No entanto, o roteiro limita seu arco de ação, relegando-a, em momentos decisivos, ao papel de testemunha ferida — quando ela poderia ter sido o vetor da denúncia.

DiCaprio, por sua vez, desmonta sua própria persona carismática para encarnar a torpeza silenciosa de Ernest. Seu desempenho não oferece catarse nem vilania clássica: é um mergulho no abismo da passividade cúmplice. Cada hesitação de Ernest, cada frase repetida mecanicamente, cada olhar vago, revela um sujeito que jamais se viu como protagonista da própria história — e por isso se presta com docilidade a protagonizar a ruína de outros. Há nele o eco da pergunta inquietante feita pelo agente Tom White: “Você é um homem bom?”. A dúvida que paira sobre a resposta revela o ponto nevrálgico do filme: não é o psicopata que sustenta sistemas de violência, mas o medíocre que os aceita sem questionar.

A estrutura narrativa opta por acompanhar os criminosos e seus dilemas, o que gera tensão estética, mas também levanta uma questão ética inescapável: como se sustenta uma história em que as vítimas são satélites da ação alheia? Embora haja momentos de genuína introspecção e cenas em que os Osage buscam justiça — inclusive em Washington —, essas passagens funcionam mais como respiros do que como motores da trama. O protagonismo, mais uma vez, é da figura branca, mesmo que em ruína. Scorsese tenta corrigir esse desequilíbrio com uma cena final metalinguística que explicita a construção narrativa — um gesto lúcido, mas incapaz de reequilibrar o que foi estruturado desde o início.

Tecnicamente, o filme alcança um grau de sofisticação visual e sonora que confirma a maestria de seu realizador. A fotografia de Rodrigo Prieto molda atmosferas densas com composições pictóricas e iluminação quase palpável. A trilha de Robbie Robertson entrelaça tradição indígena e pulsação contemporânea, evocando uma ancestralidade ferida, mas resistente. Ainda assim, há excessos formais que poderiam ter sido podados sem prejuízo da densidade emocional: cortes mais incisivos na montagem e figurinos menos idealizados dariam maior rugosidade ao cenário. O elenco coadjuvante, composto por nomes como Cara Jade Myers e William Belleau, oferece interpretações precisas que, embora muitas vezes subaproveitadas, ampliam o alcance sensorial da narrativa.

Scorsese já havia explorado os custos humanos da ambição em outras histórias, mas aqui ele empilha os destroços da supremacia branca com um silêncio que grita. O filme não exige que escolhamos um vilão: convida-nos a reconhecer o sistema. Sua força está em escancarar que o genocídio dos Osage não se deu apenas por tiros, mas por instituições, contratos e afetos instrumentalizados. A brutalidade está na forma como se ama, se casa, se herda — e se mata. A beleza amarga do filme está em deixar a pergunta aberta: o que estamos dispostos a ver — e quem aceitamos deixar de fora quando contamos nossas histórias?

Filme: Assassinos da Lua das Flores
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 2023
Gênero: Crime/Drama/Mistério/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★