Esqueça todos os outros: o melhor filme deste mês acabou de chegar ao Prime Video Divulgação / Miramax

Esqueça todos os outros: o melhor filme deste mês acabou de chegar ao Prime Video

Em “Aqui”, Robert Zemeckis tenta domar o tempo com os instrumentos do cinema digital, mas termina enredado em sua própria ilusão de controle. A partir da premissa engenhosa da graphic novel de Richard McGuire — um ponto fixo no espaço onde fragmentos de vidas atravessam séculos —, o diretor reconstrói a história de uma sala de estar na Filadélfia como palco permanente de pequenos e grandes dramas. A ambição é colidir o cósmico com o íntimo, do berço da vida aos escombros do sonho americano. No entanto, ao transformar o dispositivo conceitual em obstáculo formal, o filme revela não a multiplicidade do tempo, mas o empobrecimento da experiência quando submetida a um molde inflexível. A câmera imóvel, que deveria operar como testemunha silenciosa da história, se converte em símbolo de uma narrativa que observa, mas não escuta.

Esse imobilismo técnico seria tolerável caso a dramaturgia o compensasse com alguma densidade emocional. Mas mesmo os personagens centrais — Richard e Margaret, vividos por Tom Hanks e Robin Wright, digitalmente rejuvenescidos até a caricatura — permanecem à deriva em diálogos expositivos que não escondem a fragilidade da construção. O vaivém temporal, embora visualmente engenhoso, funciona como artifício isolado, sem efeito acumulativo. Cada vinheta familiar esgota-se em si mesma, prisioneira de uma estética de colagem que não articula verdadeiros vínculos entre as gerações. O “aqui” do título não conecta: apenas compartimenta. Ao tentar inserir representações episódicas da história americana — desde a ocupação indígena até famílias negras do pós-guerra — o roteiro as trata como adereços simbólicos, esvaziando sua presença política e emocional.

Zemeckis parece fascinado pela engenharia da memória, mas desinteressado pela matéria viva que a compõe. O passado é manipulado como uma sequência de slides, ajustável segundo conveniências narrativas. A escolha por manter a lente fixa até os minutos finais, ao invés de produzir tensão poética, apenas sublinha a estagnação. Quando a câmera enfim se move, já não há mais o que redimir: a sala, testemunha silenciosa de uma sucessão de promessas não cumpridas, está tão fossilizada quanto os rostos suavizados por CGI. O dispositivo visual, que na graphic novel operava como uma sobreposição quase espiritual de tempos e emoções, aqui se transforma em uma vitrine fria onde o tempo é ilustrado, não experienciado. Mesmo a tentativa de humor ou excentricidade — como no casal da La-Z-Boy, supostamente mais feliz por não ter filhos — soa como alívio cênico, não como variação tonal significativa.

A ausência de camadas verdadeiramente críticas é ainda mais notável diante dos momentos em que o filme poderia confrontar o legado da violência, do apagamento e da segregação. Mas “Aqui” opta por retratar a história com a delicadeza de um cartão-postal da “Saturday Evening Post”, evitando qualquer perturbação que comprometa sua moldura nostálgica. Há um desconforto latente nos silêncios — não os que dizem, mas os que evitam dizer. O tempo, em sua vastidão, é usado como pano de fundo, jamais como agente transformador. A sala de estar, cujo mobiliário muda mais que os valores que ela abriga, atravessa guerras, depressões e revoluções sem que o filme se comprometa com as feridas abertas por esses eventos. O resultado é um desfile de fantasmas domesticados, onde até o sofrimento é higienizado para caber nos limites de um plano estático.

Curiosamente, os momentos de maior impacto ocorrem quando a encenação cede espaço ao desgaste real: os rostos envelhecidos dos protagonistas revelam, sem o peso da maquiagem digital, um rastro de desilusão que nenhuma fala previamente escrita conseguiu expressar. Wright, em particular, oferece uma expressão de cansaço amoroso que contrasta brutalmente com a artificialidade dos trechos anteriores. Mas essa centelha de autenticidade não é suficiente para incendiar a frieza estrutural do longa. Fica a impressão de que, sob o verniz de inovação técnica, há uma relutância em se arriscar emocionalmente. Como se Zemeckis tivesse mais medo de imperfeições do que de irrelevância.

A premissa de que cada lugar guarda as marcas invisíveis de tudo o que ali aconteceu poderia ter sido desenvolvida como uma meditação sobre a persistência da memória, os ciclos de afeto e violência, ou a fragilidade das narrativas herdadas. Em vez disso, o filme escolhe um caminho de composição simétrica e emoção regulada, tratando o tempo não como uma força que reconfigura a existência, mas como um fio que pode ser cortado e costurado a gosto. A verdadeira falha de “Aqui” não está na tecnologia nem no roteiro, mas na recusa de olhar para o tempo como um corpo orgânico, em constante mutação, capaz de ferir, curar, contradizer — e sobreviver à câmera.

Filme: Aqui
Diretor: Robert Zemeckis
Ano: 2024
Gênero: Coming-of-age/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★