Há algo de quase cúmplice no modo como Yorgos Lanthimos observa o comportamento humano: ele não o explica, tampouco tenta suavizá-lo — apenas o posiciona sob uma luz que o expõe em seu estado mais cru e desconcertante. Em sua nova empreitada, o diretor recusa qualquer pacto com o senso comum e orquestra uma sequência de delírios narrativos que mais provoca o espectador do que lhe oferece respostas. Há aqui uma tentativa deliberada de desconstruir a ideia de linearidade emocional, e “Tipos de Gentileza” se revela não como uma obra a ser compreendida em termos tradicionais, mas como um organismo fragmentado que pulsa em três movimentos dissonantes e complementares. Ao lado de Efthimis Filippou, Lanthimos retoma a escrita conjunta que consagrou títulos como “O Lagosta” e “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, mas agora em registro ainda mais anárquico, atravessado por uma ironia tão incômoda quanto precisa.
Logo no primeiro segmento, intitulado “A Morte de RMF”, o espectador é empurrado para um pesadelo em que hierarquia e desejo são distorcidos até se tornarem irreconhecíveis. A sigla do título é um enigma proposital — uma armadilha sem chave — e a ambiguidade já sinaliza que nada ali será entregue de bandeja. Jesse Plemons, em seu papel mais hipnótico até aqui, encarna um homem reduzido à condição de marionete por um chefe insano interpretado com perversidade elegante por Willem Dafoe. As ordens absurdas, que vão do controle da vida sexual ao uso de abortivos clandestinos, instauram uma atmosfera de claustrofobia moral, em que o absurdo burocrático se mistura ao grotesco existencial. Lanthimos não suaviza: sua mise-en-scène é seca, sua ironia, cortante. E é precisamente essa recusa à sutileza que transforma a humilhação do personagem em uma alegoria mais ampla sobre a ilusão do livre-arbítrio.
Na segunda parte, “RMF Está Voando”, o fio narrativo segue outro homem em ruína — desta vez, um policial em estado de desintegração emocional após o reaparecimento da esposa, dada como morta. O retorno de Emma Stone, em performance contida e perturbadora, não serve de consolo, mas de ameaça. O que Lanthimos captura com precisão cruel é a inquietação gerada pelo reencontro com aquilo que julgávamos perdido — e que talvez devêssemos ter deixado assim. Aqui, a lógica narrativa é suspensa em favor de uma espiral paranoica, em que o amor se transmuta em dúvida, e a identidade, em performance. Tudo é suspeito, inclusive o afeto. Se no primeiro episódio o controle era imposto de fora, agora ele brota do abismo interior, de uma mente em colapso que se nega a aceitar a imprevisibilidade como regra.
A tríade se encerra com “RMF Come um Sanduíche”, capítulo que radicaliza ainda mais a experiência, ao flertar com a completa dissociação entre o real e o simbólico. Plemons e Stone retornam em novos corpos e nomes — Andrew e Emily —, mas o vazio permanece. A repetição não é uma falha do sistema: é o próprio sistema em ação. A música “Sweet Dreams”, com sua melodia hipnótica e letra ambígua, sublinha a tese subterrânea de Lanthimos: os sonhos são fabricados, mas os pesadelos, esses sim, são genuínos. Neste último ato, o cineasta parece zombar de qualquer expectativa de redenção, ao desfigurar os vínculos entre os personagens até que reste apenas a carcaça de uma humanidade desconectada, errante, quase ausente de si.
“Tipos de Gentileza” exige que o espectador se desloque para um lugar de desconforto intelectual, onde não há conforto emocional nem lógica narrativa segura. Trata-se de um cinema que não quer ser decifrado, mas sentido com a estranheza que só o inconsciente reconhece. Lanthimos, mais uma vez, desmonta certezas para expor suas engrenagens podres e rir delas — um riso que não consola, apenas fere. E é nesse ferimento que reside sua grandeza: ele não deseja curar, mas abrir a ferida certa.
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