Novo filme de Tyler Perry acaba de chegar ao Prime Video e já entrou para o top 10 global Divulgação / Amazon Prime Video

Novo filme de Tyler Perry acaba de chegar ao Prime Video e já entrou para o top 10 global

Poucos filmes policiais se arriscam a tratar o sistema judicial como uma arena onde as disputas de poder contaminam o que deveria ser a busca pela verdade. Neste cenário, a produção “Duplicidade” emerge como um exercício de tensão moral e política, desafiando não apenas a gramática do suspense, mas também os limites éticos do espectador. A narrativa acompanha uma advogada negra confrontada com o assassinato do marido de sua melhor amiga — um crime racialmente carregado, cometido por um policial branco — e conduzida a um labirinto onde decisões jurídicas são atravessadas por pressões midiáticas, conveniências institucionais e pactos subterrâneos. Ao optar por deslocar a ação para o terreno incômodo das omissões e acomodações, o filme transforma a figura da protagonista em um vetor de fricção entre justiça e sobrevivência.

Ao contrário de thrillers que se contentam com o simulacro de crítica social, esta produção finca os pés em um terreno muito mais espinhoso, onde o drama individual é inseparável de estruturas opressivas. Com o auxílio de seu parceiro — um ex-policial agora convertido em investigador particular — a personagem atravessa um campo minado de aparências e simulações. A trama não se resume a descobrir quem cometeu o crime, mas a entender por que certos crimes são julgados de forma diferente, dependendo de quem os comete ou de quem os sofre. Essa abordagem confere ao roteiro uma densidade rara: ele não quer apenas capturar a atenção, mas corroer certezas, apontar contradições e expor as brechas de um sistema que lucra com a ambiguidade.

Visualmente, o filme atinge um padrão técnico quase clínico. Filmado em 4K, exibe uma nitidez que amplifica a frieza dos ambientes e sublinha a atmosfera de constante vigilância — como se cada cena estivesse sendo observada por olhos que julgam antes mesmo que a verdade possa se manifestar. Essa estética depurada não se limita a uma questão formal; ela reforça a sensação de que o sistema é uma máquina polida e impessoal, capaz de absorver conflitos humanos e devolvê-los como estatísticas, vereditos e manchetes. E ainda que o enredo por vezes se curve a escolhas mais previsíveis, há um cuidado evidente em preservar o fio ético da narrativa, evitando que a tensão se resolva por atalhos ou fórmulas prontas.

A recusa ao espetáculo do tribunal é outro mérito: em vez de investir em embates jurídicos teatrais, a narrativa mergulha nos bastidores — onde se decidem os rumos de uma investigação antes que ela comece oficialmente. Essa escolha desloca o eixo do drama, privilegiando o desconforto dos impasses éticos, a dissimulação dos aliados, o silêncio dos cúmplices. O suspense não vem apenas do “quem fez?”, mas do “quem será protegido?” e “quem será sacrificado?”. Com isso, o filme se aproxima mais de uma autópsia institucional do que de um thriller convencional, revelando camadas de interesse que se sobrepõem ao próprio crime.

Embora tenha dividido opiniões entre a crítica, a recepção ambivalente do filme revela justamente sua relevância. Produções que tensionam as bordas de seu gênero raramente alcançam consenso — e não deveriam. Se alguns apontam a previsibilidade de certos momentos como fraqueza, outros reconhecem que a força da obra está na sua disposição de incomodar. O mérito está menos na construção de surpresas narrativas do que na coragem de implicar o espectador em dilemas que não se resolvem com a exposição de um culpado, mas com o reconhecimento de uma engrenagem corrompida em seu núcleo.

Mesmo os que mantêm reservas à trajetória autoral de Tyler Perry encontram aqui uma inflexão significativa: ele abandona os recursos mais reconhecíveis de seu estilo para construir uma narrativa que recusa a conciliação e aposta na dissonância. A direção evita atalhos fáceis, preferindo o incômodo da dúvida ao conforto da resposta. É uma escolha que pode alienar, mas também elevar — e isso é raro no panorama saturado do entretenimento criminal. Ao colocar em primeiro plano não apenas o crime, mas o modo como ele é instrumentalizado, o filme alcança uma densidade ética que reverbera muito além dos créditos finais.

“Duplicidade” não aspira à unanimidade — tampouco precisa dela. Seu impacto não depende de ser admirado, mas de ser enfrentado. Há, na construção da sua narrativa, um convite nada confortável para que o espectador reconheça as estruturas que se mantêm intactas mesmo quando a justiça parece ser feita. E se o cinema tem algum poder além do entretenimento, talvez seja justamente esse: o de forçar o olhar a permanecer onde preferiríamos desviar.

Filme: Duplicidade
Diretor: Tyler Perry
Ano: 2025
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★