Nem Titanic, nem Diário de uma Paixão: a história de amor que vai dividir sua vida entre antes e depois está na Netflix Divulgação / Netflix

Nem Titanic, nem Diário de uma Paixão: a história de amor que vai dividir sua vida entre antes e depois está na Netflix

O amor, quando transplantado para o campo minado das grandes cidades, deixa de ser poesia para se tornar estratégia de sobrevivência. Em “Pérolas no Mar”, Rene Liu não retrata um casal; ela disseca um pacto silencioso entre dois jovens que carregam mais sonhos do que bagagem. Jianqing e Xiaoxiao não se apaixonam como nas ficções tradicionais — seu afeto brota da partilha forçada das derrotas, da intimidade de quem divide uma garrafa de água e uma esperança em plena estação de trem. Vindo da zona rural para enfrentar a selva concreta de Pequim, eles não são arquétipos, mas estatísticas vivas: migrantes jovens, sem rede de apoio, tentando extrair dignidade de uma realidade hostil. A cidade não os acolhe; apenas tolera sua presença enquanto houver força para continuar vendendo softwares piratas e escapando da fiscalização. Nesse cenário, Pequim não é palco de ascensão, mas de erosão lenta — uma capital que promete tudo e entrega pouco, sobretudo àqueles sem “hukou”.

Ao longo da década seguinte, os dois passam de cúmplices a amantes e, por fim, a sobreviventes um do outro. O afeto entre eles amadurece na mesma proporção em que os idealismos vão apodrecendo. Jianqing, guiado pela ambição de criar um videogame autoral, transforma-se em engrenagem da lógica produtiva que jurava desafiar. Já Xiaoxiao, transitando entre empregos precários e relacionamentos utilitários, aprende que para uma mulher pobre o romantismo é um luxo que o cotidiano não permite. Ela não é cínica; é lúcida. Sabe que ninguém a resgatará, nem mesmo o homem que a ama. Jianqing a protege, mas falha em compreendê-la. Ele acredita que basta trabalhar mais para construir uma vida a dois, sem notar que a mulher ao seu lado já se despedia há muito, silenciosamente. Quando enfim se rendem um ao outro, não é o início de um idílio, mas a prévia do desgaste: amam-se com a ternura de quem sabe que o tempo os empurrará para lados opostos.

A separação não explode como um evento dramático, mas se instala como poeira que vai se acumulando nos cantos: invisível, constante e irremediável. A ruptura não é causada por deslealdade, mas por prioridades desalinhadas. Jianqing quer construir; Xiaoxiao quer respirar. Quando ela parte, ele permanece — não por escolha, mas por inércia. Constrói, enfim, seu império: casa, carro, cargo. Mas ao alcançar o que a sociedade define como êxito, percebe que o sucesso não é sinônimo de presença, tampouco substitui o calor de uma vida compartilhada. O jogo que desenvolve, inspirado em Xiaoxiao, é tanto uma homenagem quanto uma tentativa fracassada de recriação: um homem em preto e branco procurando uma figura que talvez nem exista mais. O amor ali não é memória; é fantasma. E nenhum código é capaz de ressuscitar o que se perdeu por desatenção.

Rene Liu, com sua experiência no palco e no estúdio, compreende que o amor não mora nas promessas, mas nas entrelinhas dos silêncios que não se souberam ler. Sua direção rejeita o lirismo fácil e aposta em imagens que sugerem mais do que afirmam. Ao alternar entre passado e presente, entre trem e avião, entre despedidas e reencontros, ela constrói um campo de tensão em que cada gesto carrega camadas de desejo e arrependimento. Quando, após dez anos, os dois voltam a se encontrar num hotel improvisado por causa do mau tempo, não há revanche nem reconciliação — apenas o reconhecimento amargo de que o tempo não devolve nada, apenas transforma. Xiaoxiao ainda sorri, mas com a boca de quem já aprendeu a não esperar. Jianqing a escuta, mas com os ouvidos de quem não tem mais a quem pedir perdão.

O filme propõe uma pergunta incômoda: o que resta quando se conquista tudo, menos a pessoa com quem se queria dividir? Em tempos de “sangculture”, quando os jovens abandonam os ideais herdados por saberem que são inalcançáveis ou inúteis, “Pérolas no Mar” oferece um retrato agudo da falência afetiva como subproduto do triunfo profissional. O amor ali não fracassa porque foi frágil, mas porque não coube dentro de um cronograma regido por metas, prazos e boletos. E se o último trem parte sem que se consiga embarcar, não é a tragédia que importa — é o que se decide fazer com a espera que resta na plataforma. Nem todo reencontro é convite. Às vezes, é apenas lembrança do que se perdeu tentando vencer.

Filme: Pérolas no Mar
Diretor: Rene Liu
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★