Joaquin Phoenix, envolto em uma névoa de apatia calculada, interpreta Abe Lucas como se carregasse nas costas o fardo de uma intelectualidade em ruínas. Em “Homem Irracional”, Woody Allen parece não apenas repetir os temas que o assombram — acaso, culpa, niilismo, desejo —, mas desmontá-los e remontá-los com um desleixo deliberado, como quem escreve não para contar uma história, mas para reafirmar o próprio cansaço com o sentido. A entrada em cena de Abe, com seu Volvo desatualizado e sua aura de filósofo caído em desgraça, não sinaliza uma virada narrativa, mas a repetição de um ciclo onde o protagonista não se reconstrói — apenas se acomoda à própria dissolução. O ambiente universitário, com seus corredores que reverberam boatos e suas salas carregadas de reverência vazia, funciona como um espelho dessa farsa intelectual: ali, o prestígio é mantido mais pelo eco do passado do que pela substância do presente.
Esse esvaziamento se explicita quando Abe, cercado por discípulas fascinadas por seu suposto gênio, se converte em uma caricatura de pensador existencial: um homem que repete máximas de Kant e Dostoiévski como slogans de camisetas, como se a citação bastasse para comprovar profundidade. Jill, interpretada por Emma Stone com uma doçura inquieta, é a encarnação do olhar ingênuo que se deixa seduzir pela fachada de complexidade. O problema, porém, não está na credulidade dela, mas na pobreza do que lhe é oferecido: Abe não seduz pelo que pensa, mas pelo teatro que ensaia. A diferença entre sofisticação e pretensão é medida aqui pela ausência de conflito real. Jill acredita que encontrou um mentor; o espectador, no entanto, reconhece o vazio onde ela vê mistério. E Emma Stone, lutando contra um roteiro que lhe impõe reações inverossímeis, tenta dar vida a uma personagem que o texto insiste em reduzir a função de escada para um homem que jamais sobe.
A virada narrativa, quando Abe decide assassinar um juiz, revela mais sobre a lógica do diretor do que sobre o próprio personagem. O gesto, motivado por uma conversa casual ouvida em uma lanchonete, encena uma forma de moralidade paralela que Allen já explorou com mais ambição em filmes anteriores. Mas aqui, a ideia de justiça privada não nasce de um dilema ético genuíno — ela surge como saída de emergência para um roteiro que perdeu a fé na introspecção. O assassinato não pesa sobre Abe; ele o revigora. A partir desse ponto, o professor recobra apetite, criatividade, libido. A morte, na lógica interna do filme, não é uma transgressão: é uma terapia. Esse deslocamento, embora deliberadamente amoral, carece de qualquer nuance filosófica, porque a narrativa não se interessa pelo preço do gesto, mas pela pose que ele permite sustentar. O crime perfeito de Abe é menos uma provocação metafísica e mais uma desculpa conveniente para a manutenção de uma persona torturada que nunca foi de fato desafiada.
Essa artificialidade estrutural atinge o auge na forma como o roteiro organiza — ou desorganiza — sua progressão. A narração em off, dividida entre Abe e Jill, em vez de fornecer camadas, esvazia o mistério. Ao antecipar pensamentos, justificar ações e repetir o que já está visível em cena, ela atua como um manual de instruções para um filme que se recusa a confiar na inteligência do espectador. Phoenix, com sua entrega estoica, parece consciente da limitação do material que lhe foi entregue, e o interpreta com uma espécie de contenção zombeteira — como se Abe fosse também uma crítica ao tipo de personagem que ele próprio encarna. Parker Posey, como a professora entediada que vê em Abe uma saída para o próprio abismo doméstico, oferece lampejos de vitalidade, mas sua personagem nunca ultrapassa o esboço. E é justamente essa sensação de rascunho permanente — de ideias que não amadurecem, de personagens que não se completam — que transforma “Homem Irracional” em um filme que parece menos escrito do que improvisado por alguém que já não tem paciência para o rigor.
Mas talvez o mais perturbador seja o que o filme deixa escapar involuntariamente: a suspeita de que o roteiro tenha raízes mais íntimas do que seu autor deseja admitir. O assassinato do juiz — figura que, no mundo real, já foi alvo de declarações duras por parte de Allen — atravessa a narrativa como um acerto de contas simbólico, disfarçado de exercício filosófico. A impessoalidade do crime é, paradoxalmente, a pista mais íntima do enredo: ao matar alguém que nada representa pessoalmente para Abe, o personagem concretiza a ideia de um gesto que, embora justificado pela razão, está envenenado por ressentimento. Isso ressoa como uma metáfora amarga de um criador que se utiliza da ficção não para exorcizar dilemas, mas para reciclá-los em argumentos frágeis que protegem seu próprio mito. Não se trata de julgamento moral — trata-se da constatação de que, ao abdicar da complexidade, o filme escancara aquilo que tenta mascarar: o colapso da dúvida como motor dramático.
Não é o crime que destrói Abe, mas a exposição da farsa. Quando suas ações vêm à tona, o que se desfaz não é uma filosofia — é um teatro. O desfecho, que poderia invocar tragédia, opta por uma resolução funcional, sem impacto real, como se o filme quisesse apenas encerrar um ciclo narrativo que nunca chegou a ser plenamente inaugurado. E assim, “Homem Irracional” se cristaliza como um produto de uma mente fatigada, que ainda se agarra aos próprios temas, mas já não os examina com rigor. A provocação é esvaziada pela falta de coragem de olhar nos olhos de suas próprias contradições. E o espectador, ao sair da sessão, não carrega perguntas, mas um incômodo: aquele que deveria ser um mergulho filosófico se revelou uma pose, e nada é mais desolador do que uma mente brilhante contentando-se com a simulação de profundidade.
★★★★★★★★★★