Há um tipo de violência que não se anuncia com estrondo, mas se infiltra lentamente nas paisagens. Em “Na Terra de Santos e Pecadores”, ela está entranhada nos vales verdes da Irlanda do Norte, misturando-se à bruma e às cicatrizes do solo. O que se vê não é apenas um filme sobre vingança ou redenção tardia, mas um estudo inquietante sobre o desgaste ético de comunidades moldadas pela guerra. Robert Lorenz, longe de repetir fórmulas visuais consagradas, opta por uma encenação quase litúrgica: cada cena parece marcada por uma solenidade grave, como se os personagens caminhassem sobre os destroços de um conflito que ainda estala nos ossos. E Liam Neeson, em seu estado mais crepuscular, canaliza décadas de papéis violentos para criar Finbar Murphy — não como ícone de resistência, mas como corpo cansado de executar sentenças que já perderam o sentido.
Murphy não é um herói em crise: é alguém que já ultrapassou o ponto de retorno, mas ainda se arrasta por entre os códigos que o mantiveram vivo. Sua profissão — matar sob encomenda — é ritualizada com um requinte mórbido: cavar a cova da vítima, plantar um pinheiro antes do disparo, deixar a natureza concluir o que os homens fracassaram em resolver. Esse gesto, porém, não carrega nobreza: é um reflexo de um pacto interno entre culpa e rotina. O filme não busca absolvição, mas revelações parciais. Ao introduzir Doireann McCann, vivida por uma Kerry Condon em estado febril, Lorenz contrapõe esse velho executor a uma fanática que disfarça barbárie de causa. O choque entre os dois é menos físico do que simbólico: de um lado, a exaustão de quem matou demais; do outro, a disposição histérica de continuar matando. O atentado inicial, que mata crianças por erro de cálculo, é menos um catalisador de eventos do que uma exposição precoce da ruína moral em que todos habitam.
Essa escolha narrativa desloca o filme para uma zona ambígua entre o western clássico e a crônica política velada. Donegal, o vilarejo que abriga os personagens, não é refúgio, mas campo de contaminação. A ambientação evoca os faroestes desidratados de Clint Eastwood, com os quais Lorenz já colaborou, mas troca o deserto pela névoa atlântica, e os duelos pelo desconforto ético. O protagonista vive entre fantasmas: a amizade com o policial Vincent O’Shea, a vigilância do contratante Robert McQue, e a aproximação inevitável com a ameaça disfarçada de revolução. O roteiro não avança por reviravoltas: o que o sustenta é a deterioração interna dos vínculos, os silêncios que substituem as decisões, e a sensação incômoda de que nenhuma escolha pode ser completamente justa. Quando Curtis June, irmão de Doireann, comete um crime repugnante, a punição que recebe não funciona como catarse, mas como continuidade da decomposição.
Ao escolher não confrontar os “Troubles” de forma frontal, o filme acerta em evitar o didatismo, mas também limita sua potência crítica. A violência é retratada como parte do tecido cotidiano, não como exceção — e nisso reside tanto a força quanto a limitação da narrativa. A ausência de comentários mais incisivos sobre fé, livre-arbítrio ou responsabilidade coletiva soa como uma oportunidade desperdiçada, especialmente quando se tem um personagem central tão marcado pelo peso dessas questões. Ainda assim, alguns gestos mínimos desafiam a linearidade esperada: o momento em que Doireann, após matar um homem, pede desculpas à mãe da vítima com uma frieza quase terna, sintetiza a lógica distorcida que o filme escolhe retratar — onde os conceitos de justiça e compaixão foram destilados até perderem sua forma original.
O elenco, em especial Neeson e Condon, sustenta as oscilações narrativas com uma entrega que ultrapassa o mero cumprimento de função. Neeson, ao contrário do que se viu em “Blacklight” ou “Assassino Sem Rastro”, retoma aqui uma contenção que valoriza as pausas, os gestos pequenos, o olhar de quem já aceitou que não será perdoado. Condon, por sua vez, reverte a lógica da vilania: sua personagem não se constrói pelo exagero, mas pela precisão. Não há monstruosidade gritante em seus atos, e sim uma convicção perversa que transforma cada fala em ameaça latente. Em volta deles, Ciarán Hinds e Colm Meaney cumprem papéis essenciais para manter a atmosfera de clausura emocional, sustentando uma tensão que nunca explode completamente — porque o filme entende que o verdadeiro terror está no que não se resolve.
Mesmo que tropece em alguns excessos — como o uso insistente de drones para reforçar a vastidão de Donegal, ou a tendência de esticar certos diálogos além do necessário —, “Na Terra de Santos e Pecadores” é um exercício de contenção disfarçado de suspense. Há mais silêncio do que tiroteio, mais sombras do que certezas. E é nesse terreno ambivalente que ele se destaca entre os últimos projetos de Neeson: não por reabilitá-lo como astro de ação, mas por reconhecer que sua presença carrega agora uma herança que nenhum roteiro pode ignorar. Ao sugerir que o personagem gostaria de plantar um jardim, o filme não propõe uma esperança concreta, mas revela o vazio que permanece quando a violência se torna hábito. E é justamente esse vazio, tratado com rigor e sem indulgência, que transforma um enredo previsível em experiência inquietante.
★★★★★★★★★★