Uma das obras mais grandiosas de Michael Mann está escondida no Prime Video, esperando ser descoberta Divulgação / Diamond Films

Uma das obras mais grandiosas de Michael Mann está escondida no Prime Video, esperando ser descoberta

Aos olhos apressados de quem frequenta festivais, a escolha entre “Dogman” e “Ferrari” pode parecer apenas uma questão de preferência estética: de um lado, o delírio estilizado de Luc Besson; de outro, a gravidade minuciosa de Michael Mann. Mas basta entrar na sala — qualquer uma, Darsenna ou Grande — e observar o tipo de silêncio que antecede as primeiras cenas para perceber que havia algo mais denso em jogo naquela noite. Não se tratava apenas de prestigiar um filme esperado, mas de testemunhar um cineasta revisitando, com precisão quase cirúrgica, a anatomia de um homem cuja vida encarnava o conflito entre velocidade e ruína. “Ferrari” não tenta agradar; impõe-se com o tipo de maturidade narrativa que recusa atalhos. E a lotação completa da sala, ao contrário da recepção mais morna de “Dogman”, dizia muito mais sobre o poder da introspecção bem conduzida do que sobre o apelo imediato da excentricidade.

Michael Mann não oferece a Enzo Ferrari o consolo da simpatia fácil. O que ele constrói — e Adam Driver amplia com uma frieza fértil em camadas — é o retrato de alguém incapaz de existir fora da tensão. Cada fala, cada gesto, cada ausência de emoção carrega a lógica de quem vive segundo a engenharia de precisão de suas próprias máquinas. Essa simbiose entre homem e motor não é metafórica: o Ferrari retratado aqui é um ser construído, como seus carros, para resistir ao mundo real enquanto avança sobre ele. Mas há trincas. A dor pela morte de Dino, seu filho, não escapa pelas palavras — escorre pelas omissões. Laura, a esposa, interpretada por Penélope Cruz com a fúria de quem ainda deseja ser ouvida, não está ali para ser uma antagonista melodramática. É ela quem delimita os contornos do vazio de Enzo: um vazio que nem a excelência técnica de seus protótipos nem a lealdade do filho bastardo conseguem preencher.

A ausência de catarse explícita é um risco calculado — e é o que torna o filme mais perigoso. Mann nunca força os sentimentos, mas também não os esconde. O luto em “Ferrari” tem o peso do chumbo: está nos olhos que não se cruzam, nas refeições silenciosas, nos túmulos visitados separadamente. Se Ferrari é a encarnação da máquina, Laura é a memória do que ele tentou deixar para trás: o vínculo, o afeto, a carne. A montagem de Pietro Scalia e a fotografia contida de Erik Messerschmidt criam uma espécie de coreografia da clausura: cada corte parece um encerramento, cada plano uma engrenagem parando de funcionar. A trilha sonora de Daniel Pemberton evita qualquer assomo de dramatização barata — ela tensiona sem carregar, pontua sem distrair. Tudo opera em função do desconforto sutil e acumulativo de um homem que, ao tentar dominar o tempo, perde sua própria elasticidade emocional.

O ponto de inflexão vem com a aproximação da Mille Miglia, mas não da forma esperada. Não há apoteose. Há uma colisão iminente que o espectador sente no estômago antes que o carro sequer parta. A morte do piloto Alfonso de Portago, recriada com a precisão devastadora que só Mann é capaz de coreografar, não é o clímax — é a confirmação de que toda aceleração cobra um tributo. A sequência funciona como um espelho cruel de tudo o que Ferrari tentou controlar: a falibilidade da matéria, a imprevisibilidade da estrada, a fragilidade do orgulho. Nesse ponto, “Ferrari” deixa de ser apenas uma cinebiografia sofisticada para se tornar uma meditação cruelmente sensível sobre o que resta do homem quando o mito exige mais do que ele tem a oferecer. E a pergunta que paira, silenciosa, é se Enzo alguma vez acreditou que poderia salvar alguém — ou se só se empenhava em não ser o próximo a tombar.

É possível que parte do público saia inquieta, talvez decepcionada por não encontrar em “Ferrari” a adrenalina ostensiva que o nome sugere. Mas esse é justamente o triunfo do filme: operar em regime oposto ao da expectativa, substituindo a fascinação pelo espetáculo pelo incômodo da análise. E é nesse desvio de rota que a maturidade de Mann brilha. Ele não quer que admiremos Ferrari — quer que compreendamos, ainda que com relutância, a lógica interna de um homem que desenhou máquinas para vencer, mas jamais aprendeu a frear. Em um tempo em que biografias se rendem à tentação do heroísmo ou da vilania, “Ferrari” escolhe a estrada mais difícil: a da contradição constante, da dor contida, da glória que cobra em silêncio. E essa estrada, sinuosa e irregular como a Mille Miglia, talvez seja a única capaz de conduzir, enfim, a algum tipo de verdade.

Filme: Ferrari
Diretor: Michael Mann
Ano: 2023
Gênero: Ação/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★