Há algo profundamente revelador na forma como nos fundimos aos instrumentos que criamos. No compasso das últimas décadas, não apenas os dispositivos se tornaram extensões de nossos corpos, mas também passaram a moldar o próprio modo como experimentamos o tempo, os vínculos e a presença. Em vez de apenas servirem a funções práticas, os aparelhos eletrônicos se infiltraram na nossa identidade emocional. É esse tipo de simbiose perversa — ora caricata, ora melancólica — que Santiago Requejo explora com precisão irônica em sua comédia sutil, onde o riso surge menos como alívio e mais como espelho.
A história gravita em torno de um personagem que não perdeu apenas o controle sobre o celular — perdeu-se nele. O protagonista, um executivo acossado por alertas, prazos e a promessa fugidia de produtividade absoluta, revela-se um espécime moderno de uma patologia ainda recente: o pavor de ficar desconectado. Requejo e seu coautor, José Gabriel Lorenzo, compreendem que o problema não está no aparelho em si, mas no tipo de existência que ele induz. O que se desenrola na tela é menos uma crítica e mais um diagnóstico: a nomofobia enquanto colapso das fronteiras entre o necessário e o inescapável.
Interpretado com afiada ambivalência por Adrián Suar, Carlos encarna a disfunção contemporânea com um misto de impotência e negação. Sua esposa — planejando, com esforço afetuoso, uma reconexão conjugal antes que a casa se torne vazia — é ignorada, não por desamor, mas por distração crônica. O inimigo íntimo tem nome de inovação: Daiafon 17, último grito da inteligência artificial, seduz com promessas de organização e eficiência, enquanto sequestra a atenção e desativa qualquer possibilidade de presença real. É esse fascínio pelo artifício que dissolve os laços mais elementares.
A corrosão não é abrupta — ela se infiltra pelos cantos das decisões cotidianas. A supressão do tempo compartilhado, o adiamento constante de conversas e a ansiedade que se instala quando a conexão oscila tornam-se o retrato da dissolução afetiva. Quando finalmente o colapso ocorre, a tragédia não está apenas na separação do casal, mas na incapacidade de Carlos de reconhecer o momento em que tudo se perdeu. A narrativa avança, então, para um grupo de apoio, onde a comédia beira o absurdo, mas nunca descarta o desconforto. A dependência ganha voz coletiva, e o absurdo do vício se revela norma.
O filme não cede à tentação do sermão tecnológico. Seu mérito está em reconstituir, com engenho e leveza, a atmosfera de pânico e ilusão que circunda o uso cotidiano desses objetos. Paz Vega oferece o contrapeso necessário, conferindo à trama uma dimensão de reencontro que não apela para idealizações. É pela via da vulnerabilidade que se encontra uma fresta para a liberdade, ainda que tímida. O novo ponto de partida não exige heroísmo, apenas uma escolha improvável: estar presente, de corpo e atenção, em uma cafeteria qualquer, às oito da noite.
Essa decisão final, prosaica em aparência, é na verdade subversiva. Sugere que a recuperação da autonomia não se dá por confrontos épicos, mas por pequenos gestos conscientes. A renúncia ao dispositivo como apêndice da alma é apresentada como possibilidade — difícil, mas factível. Requejo não pretende uma utopia offline, tampouco se rende ao niilismo digital. Ele propõe algo mais inquietante: que a normalidade contemporânea talvez seja o problema — e que rir disso, se for riso de lucidez, é um começo promissor.
★★★★★★★★★★