O filme essencial da Netflix que todos deveriam assistir: uma poderosa reflexão sobre a modernidade líquida de Zygmunt Bauman Divulgação / Netflix

O filme essencial da Netflix que todos deveriam assistir: uma poderosa reflexão sobre a modernidade líquida de Zygmunt Bauman

Há algo profundamente revelador na forma como nos fundimos aos instrumentos que criamos. No compasso das últimas décadas, não apenas os dispositivos se tornaram extensões de nossos corpos, mas também passaram a moldar o próprio modo como experimentamos o tempo, os vínculos e a presença. Em vez de apenas servirem a funções práticas, os aparelhos eletrônicos se infiltraram na nossa identidade emocional. É esse tipo de simbiose perversa — ora caricata, ora melancólica — que Santiago Requejo explora com precisão irônica em sua comédia sutil, onde o riso surge menos como alívio e mais como espelho.

A história gravita em torno de um personagem que não perdeu apenas o controle sobre o celular — perdeu-se nele. O protagonista, um executivo acossado por alertas, prazos e a promessa fugidia de produtividade absoluta, revela-se um espécime moderno de uma patologia ainda recente: o pavor de ficar desconectado. Requejo e seu coautor, José Gabriel Lorenzo, compreendem que o problema não está no aparelho em si, mas no tipo de existência que ele induz. O que se desenrola na tela é menos uma crítica e mais um diagnóstico: a nomofobia enquanto colapso das fronteiras entre o necessário e o inescapável.

Interpretado com afiada ambivalência por Adrián Suar, Carlos encarna a disfunção contemporânea com um misto de impotência e negação. Sua esposa — planejando, com esforço afetuoso, uma reconexão conjugal antes que a casa se torne vazia — é ignorada, não por desamor, mas por distração crônica. O inimigo íntimo tem nome de inovação: Daiafon 17, último grito da inteligência artificial, seduz com promessas de organização e eficiência, enquanto sequestra a atenção e desativa qualquer possibilidade de presença real. É esse fascínio pelo artifício que dissolve os laços mais elementares.

A corrosão não é abrupta — ela se infiltra pelos cantos das decisões cotidianas. A supressão do tempo compartilhado, o adiamento constante de conversas e a ansiedade que se instala quando a conexão oscila tornam-se o retrato da dissolução afetiva. Quando finalmente o colapso ocorre, a tragédia não está apenas na separação do casal, mas na incapacidade de Carlos de reconhecer o momento em que tudo se perdeu. A narrativa avança, então, para um grupo de apoio, onde a comédia beira o absurdo, mas nunca descarta o desconforto. A dependência ganha voz coletiva, e o absurdo do vício se revela norma.

O filme não cede à tentação do sermão tecnológico. Seu mérito está em reconstituir, com engenho e leveza, a atmosfera de pânico e ilusão que circunda o uso cotidiano desses objetos. Paz Vega oferece o contrapeso necessário, conferindo à trama uma dimensão de reencontro que não apela para idealizações. É pela via da vulnerabilidade que se encontra uma fresta para a liberdade, ainda que tímida. O novo ponto de partida não exige heroísmo, apenas uma escolha improvável: estar presente, de corpo e atenção, em uma cafeteria qualquer, às oito da noite.

Essa decisão final, prosaica em aparência, é na verdade subversiva. Sugere que a recuperação da autonomia não se dá por confrontos épicos, mas por pequenos gestos conscientes. A renúncia ao dispositivo como apêndice da alma é apresentada como possibilidade — difícil, mas factível. Requejo não pretende uma utopia offline, tampouco se rende ao niilismo digital. Ele propõe algo mais inquietante: que a normalidade contemporânea talvez seja o problema — e que rir disso, se for riso de lucidez, é um começo promissor.

Filme: Não Posso Viver sem Você
Diretor: Santiago Requejo
Ano: 2024
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★