Na esteira dos grandes talentos que visitam a Terra uma vez a cada dez mil anos, surgem figuras cuja irrelevância acintosa se revela um duro golpe naquela fantasia diáfana, gasta, surrada quanto a uma possível salvação do gênero humano. O falso sentimento de que as estrelas estão a um clique de nossa vã mortalidade, mas jamais padecendo dos miúdos e grandes tormentos que angustiam mulheres e homens comuns, assalta-nos a todos, ainda que, no fundo, saibamos que males de toda ordem deságuam até na vida desses oráculos pós-modernos, que costumam habitar um Olimpo chamado redes sociais, levando-nos a crer que fez água a confluência de mídias enunciada pelo historiador inglês Peter Burke.
Billy Wilder (1906-2002) já havia falado a respeito em “Crepúsculo dos Deuses” (1950), quiçá a peça cinematográfica definitiva sobre velhas divas que se recusam a envelhecer e tanto menos a descer da ribalta, e cercam-se de todos os artifícios que podem na intenção de se convencer de que para elas o tempo não passou. “A Farsa” emula muito do que Wilder apresenta em seu belo e divertido filme, recorrendo a uma ou outra atualização a fim de manter o público interessado. Nicolas Bedos é hábil ao misturar o clássico e o contemporâneo na elaboração de uma história sem muita novidade, mas ainda assim estimulante.
Na abertura, à guisa de epígrafe, Bedos lembra William Somerset Maugham (1874-1965) e diz que a Riviera Francesa é um “lugar ensolarado para pessoas sombrias”. Essa é uma pista valiosa para que se entenda a índole de quase todos os estranhos personagens a orbitar em torno de Martha Duval, uma atriz riquíssima, mas em franca debacle moral, esquecida por seus pares e numa procura desesperada por atenção. Martha vive com Adrien, um homem mais de trinta anos mais novo, bonito e sem classificação profissional definida depois de ter sido obrigado a abandonar a carreira de bailarino por causa de um acidente de que fora ele mesmo o culpado, o adorno perfeito para exibir nas constantes festas que promove em sua imensa propriedade, com uma vista ampla para o Mediterrâneo, onde embarcações apinhadas de turistas passam esperando um seu aceno breve.
No próximo convescote, a anfitriã pretende celebrar o aniversário com um pequeno número musical com Adrien ao piano, sem saber que ele não parece tão empolgado assim, por razões que o texto de Bedos, inspirado num romance seu não publicado — e em algumas experiências bem pessoais —, esclarece em cenas ágeis, feito a que a aniversariante fecha o instrumento num só golpe nas mãos do companheiro, o que não cai nada bem. Isabelle Adjani e Pierre Niney executam um passo de dois preciso, em que cabe também Marina Vacth. Faz algum tempo que Adrien quer livrar-se de Martha e Margot, a personagem de Vacth, chega na hora mais oportuna.
A trama adquire uma cadência assumidamente burlesca, apostando na metalinguagem já exposta nas sequências do primeiro ato, quando Martha encarna a própria Norma Desmond, eternizada por Gloria Swanson (1899-1983) no longa de Wilder, interrompida por Margot, colérica depois de ter levado um tiro de Simon, um ex-amante malandro interpretado por François Cluzet. Em dado momento, “A Farsa” revela seu grande trunfo, qual seja, saber amalgamar talentos de gerações distintas para obter um resultado coeso, solar e lúgubre, como a Riviera Francesa de Maugham.
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