Poucos compreenderam com tanta precisão a podridão elegante das convenções sociais quanto Nelson Rodrigues — e ninguém, talvez, teve a coragem de escancará-la com tanto prazer. Se havia hipocrisia, lá estava ele, afiando a pena com uma mistura de ironia feroz e sensualidade patológica. Sua arte não buscava redenção nem oferecia conforto: cavoucava os porões do desejo e devolvia ao público um espelho turvo, onde ninguém saía ileso. Em algum ponto desse subterrâneo, “Babygirl” sintoniza o mesmo ruído. Não como herdeiro direto, mas como alguém que tropeça no mesmo terreno minado, farejando a tensão entre civilidade e instinto. Halina Reijn pode nunca ter lido Nelson, mas escuta o que ele ouviu: os cochichos sujos das almas bem-comportadas.
É dentro desse campo minado que Romy transita. Executiva respeitada, estrategicamente vestida em sua aura de controle, ela foge para o banheiro para consumir vídeos de conteúdo duvidoso com a sofreguidão de quem tenta silenciar a própria consciência. O casamento, protocolarmente picante, é decorativo. Seu prazer real, e portanto indizível, nasce na clandestinidade das provocações corporativas. A chegada de Samuel, um estagiário de rosto sereno e olhar indomado, abre a cratera onde se esconde o que Romy finge ignorar. Há algo de predatório nela — mas também há submissão. E a tensão entre essas duas forças move o filme como uma respiração entrecortada.
Samuel não é um peão inconsciente: é parte da engrenagem que Reijn constrói com minúcia cruel. Ainda nos primeiros minutos, o jovem salva Romy do ataque de uma cadela solta — metáfora nada sutil, mas funcional, que opera em mais de uma camada. Ali, a inversão de papéis já está posta: quem protege não é quem manda, e quem manda começa a desejar não mais controlar, mas ser controlada. A partir desse ponto, o filme se constrói como um jogo de espelhos, em que cada gesto esconde uma carência, e cada silêncio carrega uma confissão sussurrada. A relação entre os dois não desafia apenas a moral convencional, mas os próprios papéis de comando e entrega. Quem seduz? Quem manipula? E o que exatamente está em disputa?
Halina Reijn não julga suas criaturas — tampouco as redime. Seu interesse está na fricção, no incômodo, na exposição sem catarse. Sua câmera invade os corpos, mas jamais nos entrega qualquer resposta que pacifique o desconforto. A trilha sonora, escolhida com precisão cirúrgica, potencializa esse mal-estar voluptuoso: George Michael e INXS invadem a diegese como fantasmas da libido, como promessas de um êxtase que jamais se completa. Há, nisso tudo, uma pulsação que lembra Adrian Lyne em sua fase mais provocadora, mas o olhar aqui é mais amargo, menos interessado no erotismo e mais concentrado na ferida.
A performance de Harris Dickinson é o eixo sobre o qual tudo gira. Em mãos menos capazes, seu Samuel poderia cair no estereótipo do jovem sedutor. Mas Dickinson trabalha com outro tipo de intensidade: a de quem habita o próprio corpo com uma certeza desconcertante. Reijn o filma como se ele fosse um presságio, uma força em suspensão, nunca inteiramente decifrável. Ao mesmo tempo em que parece disponível, ele escapa. E é justamente essa oscilação — entre presença e ausência, entre desejo e ameaça — que sustenta o suspense do filme, muito mais psicológico do que sensual.
Nicole Kidman, por sua vez, entrega uma atuação que explora os limites do controle e da implosão. Romy não é vítima nem vilã: é uma mulher que envelhece em um mundo onde o desejo feminino ainda precisa se justificar, se esconder ou se travestir de poder. Kidman encarna essa angústia com uma precisão que incomoda. Há momentos em que basta um franzir de sobrancelha ou um desvio de olhar para que compreendamos o caos interno de sua personagem. Romy não quer Samuel apenas pelo que ele é — mas pelo que ele desestrutura nela, pelo que ele desmascara.
No fim, “Babygirl” se posiciona como um experimento narrativo que oscila entre a crítica e a tentação. Não pretende oferecer lições de moral, mas tampouco se limita a ser um espelho passivo. Seu impacto está justamente na ambiguidade: é um filme que te obriga a observar sem pestanejar, mesmo quando o que se vê escorre por entre os dedos, escapa à lógica ou à justiça. Halina Reijn brinca com fogo — e sabe que parte do fascínio está em não apagar as labaredas, mas em deixá-las lamber a pele até queimar o juízo.
★★★★★★★★★★