É o filme mais visto do planeta hoje na Netflix — mas já vinha quebrando recordes há 206 dias no streaming mundial Divulgação / Paramount Pictures

É o filme mais visto do planeta hoje na Netflix — mas já vinha quebrando recordes há 206 dias no streaming mundial

Por mais que civilizações se multipliquem e estruturas sociais se aprimorem, o homem segue como um hóspede desconfortável no próprio habitat. O estranhamento não nasce de forças externas, mas da fricção interna entre consciência e limite, desejo e ruína. Desde o primeiro fôlego, a existência nos coloca diante de um campo minado onde cada passo exige mais que instinto: exige leitura do invisível, resistência ao caos e uma resiliência que não se ensina — apenas se arranca do susto. O que determina a extensão do nosso fôlego não é a ausência de desafios, mas a natureza da nossa escuta diante deles.

Essa escuta, antes de se voltar ao mundo, precisa ser afinada com os próprios ruídos que carregamos: dúvidas, angústias, ausências, uma fome de sentido que não cessa nem diante da mais concreta catástrofe. É nesse hiato entre o som e a escuta que se instala o novo capítulo da franquia iniciada por John Krasinski. Michael Sarnoski, que assume a direção de “Um Lugar Silencioso: Dia Um”, não se limita a repetir a cartilha dos filmes anteriores, mas escolhe investigar o silêncio como linguagem emocional e existencial. A aliança com Krasinski e Bryan Woods na construção do roteiro sustenta um fio narrativo que não se rompe, mas se tensiona — e é nessa tensão que o filme encontra seu motor vital.

A figura de Samira, interpretada com contida dilaceração por Lupita Nyong’o, é a representação mais vívida dessa escuta extrema. Vivendo o esgotamento de um corpo em guerra contra um câncer incurável, ela atravessa uma Nova York à beira do colapso — cidade que já era ruidosa demais para os vivos, e que agora se tornou inabitável até para os mortos. A invasão das criaturas que respondem ao menor som não é um delírio apocalíptico gratuito: é metáfora para a exposição brutal do humano, que sempre viveu à mercê de forças surdas à sua vontade. O silêncio imposto é menos uma estratégia de sobrevivência e mais uma sentença: quem quiser continuar, que aprenda a desaparecer.

Mas o desaparecimento não implica ausência de vínculo. Ao contrário: a relação improvável entre Samira e Eric (Joseph Quinn) desloca o filme de uma narrativa de terror para algo mais inquietante — um tratado sobre a necessidade de manter alguma forma de afeto mesmo quando o mundo já não responde. Não há espaço para o heroísmo convencional. O que há é a busca quase instintiva por companhia, como se o silêncio do outro fosse o único abrigo possível. A química entre os atores escapa dos clichês sentimentais e escava outras formas de ternura, mais discretas, mais desesperadas, como quem toca com cuidado uma peça rachada que não se pode deixar quebrar de vez.

A escolha de Sarnoski por uma condução mais introspectiva não elimina o espetáculo visual: as criaturas continuam a impor presença, a cidade colapsa com precisão estética, e a computação gráfica é empregada com inteligência, servindo à atmosfera e não à pirotecnia. Mas o que mais ecoa é o contraste brutal entre o barulho do fim do mundo e o silêncio de quem já não espera salvação. A Nova York que Samira percorre é tanto real quanto simbólica: um organismo falido que, mesmo assim, insiste em pulsar, como um corpo que se recusa a morrer antes da hora marcada.

O filme se move como quem carrega um segredo, e talvez o segredo seja justamente este: a catástrofe não transforma ninguém — apenas revela. Aqueles que antes já caminhavam no limite agora o fazem em terreno visível, e o que chamamos de apocalipse é só uma outra forma de escancarar o que sempre esteve falhando. O som não mata; o som apenas delata. E, diante dele, é preciso mais do que silêncio: é preciso discernimento para saber o que ainda merece ser escutado. Sarnoski entende isso com uma clareza rara, e por isso “Dia Um” ressoa muito além do que mostra.

Em vez de apenas ampliar um universo já consolidado, o filme o tensiona a partir daquilo que nele ainda restava por ser dito. E o que se diz não vem em gritos — vem em sussurros. Nos olhos marejados de Samira, no gesto contido de Eric, no silêncio que se instala entre um ataque e outro, há uma pergunta que permanece: quando tudo ruir, o que em nós ainda fará sentido continuar? Se houver resposta, ela não virá em palavras. Talvez nem precise.

Filme: Um Lugar Silencioso: Dia Um
Diretor: Michael Sarnoski
Ano: 2024
Gênero: Ficção Científica/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★