Num cenário social em que a retórica do ódio deixou de ser aberração para se tornar hábito, e onde o sofrimento alheio é consumido com a mesma indiferença com que se percorre um feed de notícias, resta pouco espaço para qualquer noção genuína de empatia. Quando o gesto que antes exprimia ternura transforma-se em ferramenta de dominação, e a infância deixa de ser promessa para converter-se em fábrica de traumas, o que sobra da humanidade que se pretendia civilizada? A sucessão de tiranias domésticas, moldadas no ventre da dor, reconfigura o ciclo da violência em algo que não apenas se repete, mas se aprimora, corroendo a alma coletiva até restar apenas o vazio como legado.
“Cilada” atua nesse terreno espinhoso com uma precisão desconcertante. Embora sua estrutura aparente remeta a um típico thriller de mistério — um predador sexual à espreita numa comunidade remota —, o que se desenha aos poucos é um mosaico de deformações emocionais e fraturas morais. Baseando-se na obra de Harlan Coben, Miguel Cohan e Hernán Goldfrid não se contentam com a superfície da trama: ao transferirem o eixo da história de Nova Jersey para a paisagem inquietantemente bela da Patagônia argentina, ampliam o alcance simbólico do enredo. Não há respiro nem refúgio — nem mesmo nas paisagens glaciais de Bariloche — quando a verdadeira violência é a que germina dentro de casa, silenciosa, até amadurecer em monstruosidade.
Ao centro do labirinto narrativo está Ema Garay, jornalista de um site policialesco, cuja obstinação por justiça beira o abismo da obsessão. Viúva, mãe, profissional e sobrevivente, ela se move por entre as ruínas da própria vida com a frieza calculada de quem sabe que sensibilidade demais paralisa. Sua convicção de ter encontrado o culpado — Leo Mercer, assistente social que parece saído de um manual de boas intenções — leva-a a montar uma armadilha que combina engenharia psicológica, manipulação midiática e um jogo online. Não há ingenuidade nesse plano: o que Ema quer é mais do que uma manchete; ela quer reconfigurar as regras da dor.
É nesse duelo psicológico entre Ema e Leo que a série atinge sua tensão mais incômoda. Leo, vivido por Alberto Ammann com a medida exata entre vulnerabilidade e ameaça latente, jamais oferece respostas fáceis. Sua figura oscila entre o salvador e o algoz, entre o equívoco judicial e o estereótipo que assombra cada episódio de abuso jamais resolvido. O espectador é forçado a reviver a dúvida: quantas vezes se condenou o inocente por conveniência? Quantas vezes se absolveu o culpado por falta de coragem? Nesse campo minado de ambiguidade moral, cada escolha parece errada — ou pior, irrelevante diante de uma justiça que há muito perdeu a função reparadora.
Há, por parte dos diretores, uma escolha consciente de jamais oferecer catarse. A cada episódio, a narrativa recusa a segurança do didatismo e investe em nuances: não existe vítima sem falhas, nem vilão destituído de humanidade. As paisagens geladas, ora sublimes, ora ameaçadoras, funcionam como espelho emocional das personagens, sobretudo Ema, cuja complexidade nunca se resolve em uma direção. Sua frieza esconde uma rachadura irreparável, e sua coragem é apenas a face pública de uma culpa antiga demais para ser nomeada.
Mais do que um suspense bem executado, o que se configura é um retrato sombrio da persistência dos traumas, e da forma como eles encontram abrigo nas estruturas cotidianas. O passado, aqui, não é memória: é presença ativa, corrosiva, que contamina cada gesto e distorce cada relação. A violência sexual, com toda a sua brutalidade silenciosa, é tratada não como exceção, mas como sintoma. Não há exagero estético, nem apelo emocional fácil — há, sim, uma secura deliberada, como quem sabe que não há anestesia para certas dores, apenas o enfrentamento nu e cru daquilo que se quis ignorar por tempo demais.
“Cilada” não entrega respostas e tampouco parece preocupada em confortar. Sua potência está justamente em fazer com que a inquietação permaneça após o último episódio, sem o alívio da resolução nem a ilusão de justiça. É uma narrativa construída para perturbar, não para entreter — e nesse desconforto reside seu maior mérito. Quando o entretenimento assume o risco de olhar diretamente para o horror, sem filtros nem piedade, ele deixa de ser fuga e torna-se espelho — aquele que, mesmo rachado, insiste em devolver o que há de mais inaceitável em nós.
Série: Cilada
Direção: Miguel Cohan e Hernán Goldfrid
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Mistério/Crime/Suspense
Nota: 8/10