A dor que se reconhece como legítima é, quase sempre, aquela que se habita. O mundo oferece um desfile de máscaras e promessas quebradas, mas é no eco íntimo das perdas e frustrações pessoais que a existência ganha densidade. Há quem insista em permanecer onde tudo parece errado, como se o tempo, por si só, pudesse rearranjar o que nasceu em desalinho. Outros, mais intuitivos ou simplesmente mais exaustos, optam por mudar de rota, não porque a esperança tenha vencido a batalha contra o cansaço, mas porque parar tornou-se insuportável. Em certos casos, o mundo parece conspirar em silêncio até que algo se destrave — um gesto, uma lembrança, uma despedida mal elaborada — e a paisagem, mesmo que inóspita, revela um caminho possível.
Dentro dessa lógica de deslocamentos emocionais e tentativas de reconstrução, o filme de Jesse Eisenberg adquire um valor inesperado. Não por prometer redenção ou respostas, mas por mergulhar no descompasso entre dois primos marcados por dores que não se cancelam, mas se revezam na tentativa de coexistir. Benjamin Kaplan, figura que a princípio parece fadada ao fastio alheio, revela-se, a cada cena, alguém que tenta desesperadamente conter um mundo interno em erupção. A viagem que decide fazer à Polônia é menos um tributo à avó falecida do que uma busca instintiva por um terreno onde sua desordem faça algum sentido. Seu primo David, involuntariamente arrastado para essa jornada, atua como o espelho desconfortável de uma normalidade frágil, que resiste até onde pode, mas que também carrega suas fissuras silenciosas.
A herança de traumas históricos como o Holocausto, longe de funcionar como pano de fundo, é tratada com uma honestidade quase incômoda, sem cair na armadilha da reverência vazia. Ao contrário, o roteiro afia suas intenções justamente ao colocar Benji como alguém que se recusa a emudecer diante da dor herdada, ainda que não saiba exatamente como lidar com ela. A viagem ao Leste Europeu funciona então como catalisador, mas também como terreno fértil para os absurdos, as falas desconcertantes, os impasses que só a intimidade permite. Culkin, em um desempenho que confunde tragédia com comicidade sem nunca perder a espinha vertebral da personagem, imprime em Benjamin uma intensidade errática, mas estranhamente coerente com o universo interno de alguém que vive à beira do colapso — ou do riso, dependendo do instante.
Eisenberg, na direção e no texto, transita com uma destreza surpreendente entre o cômico e o devastador, sem jamais permitir que um canibalize o outro. Há uma melancolia persistente em cada plano, mas também um desejo quase infantil de acreditar que, por trás das ruínas emocionais, ainda existe algo minimamente habitável. A dinâmica entre os primos é o eixo do filme, e é nela que Eisenberg finca sua melhor aposta: não há redenção, não há ajuste perfeito, mas há encontros — ainda que efêmeros, desconfortáveis ou incompletos — capazes de suspender a sensação de naufrágio.
A consagração de Kieran Culkin no Oscar por esse papel pode ter sido exagerada, mas não descabida. Ele domina cada cena como quem conhece por dentro o terreno instável da autossabotagem e da necessidade desesperada de conexão. Já Jesse Eisenberg, ao entregar uma história que não se dobra às fórmulas fáceis, prova que sua inquietação criativa tem fôlego para mais. É possível que os velhos da Academia tenham se equivocado ao ignorar sua escrita em favor de apostas mais vistosas, mas quem se deixar atravessar pelo filme saberá reconhecer ali uma densidade rara, difícil de rotular e ainda mais difícil de esquecer.
“A Verdadeira Dor” não busca comiseração. Ela a rejeita, aliás. Em seu lugar, oferece um estudo íntimo sobre o que resta quando todas as fórmulas falham. Não há trilhas triunfais nem gestos redentores, apenas personagens tentando sobreviver ao próprio labirinto emocional, onde a única saída possível talvez não leve a lugar algum — mas caminhar já basta para adiar o colapso. É essa recusa a soluções prontas que transforma o filme num raro experimento de autenticidade, capaz de fazer o espectador rir no meio do abismo e, por um segundo, acreditar que isso seja, de fato, uma vitória.
★★★★★★★★★★