O filme mais bonito da Netflix — e 80% das pessoas deixaram passar Divulgação / Netflix

O filme mais bonito da Netflix — e 80% das pessoas deixaram passar

Poucos intérpretes conseguiram reverter com tamanha contundência as expectativas que pesavam sobre suas escolhas artísticas quanto Adam Sandler. Conhecido por personagens caricatos e roteiros ancorados na repetição, ele vem, nos últimos anos, consolidando uma guinada que não apenas desconcerta, mas exige ser levada a sério. Em “O Astronauta”, adaptação de “Spaceman of Bohemia”, do escritor tcheco Jaroslav Kalfař, Sandler ultrapassa o limiar da contenção para assumir um silêncio que ecoa a vastidão ao seu redor. Seu Jakub Prochazka não é herói, mártir nem anti-herói: é um homem fraturado, refugiado em uma missão que o leva a Júpiter, mas cujo verdadeiro destino é a ruína afetiva que deixou para trás. O espaço, nesse contexto, não se oferece como promessa de conquista, mas como um cativeiro voluntário para alguém que, sem coragem de encarar o que abandonou, decide escapar para o único lugar onde ninguém poderá cobrá-lo.

Essa fuga não é geográfica, mas emocional, e o roteiro de Colby Day — ao invés de sobrecarregar a trama com revelações ou reviravoltas — opta por uma dissecação progressiva de Jakub, conduzida não por um terapeuta humano, mas por uma criatura insólita: Hanus, uma aranha alienígena que invade sua nave sem pedir licença, mas com a clareza emocional que falta a seu anfitrião. A escolha dessa entidade grotesca como canal de introspecção não é gratuita: Hanus, ao mesmo tempo ancestral e sarcástica, escancara verdades que os humanos não ousam formular, funcionando como espelho ampliado das contradições de Jakub. A provocação mais cortante talvez esteja na constatação de que a solidão que o corrói é uma construção deliberada, consequência não do espaço sideral, mas do abismo escavado entre suas promessas e suas ausências. “Por que prometemos aquilo que sabemos que não cumpriremos?”, questiona Hanus — e a resposta, dolorosamente, não vem de fora.

O que o filme realiza, portanto, é um tipo de antiodisseia. Em vez de epopeia gloriosa, temos a lenta implosão de alguém que evita o confronto com o próprio passado até que esse passado retorne sob a forma de lembrança, delírio ou acusação implícita. As aparições de Lenka, grávida e silenciosa, mais evocadas do que efetivamente presentes, não funcionam como elos afetivos, mas como fantasmas de uma intimidade rompida. Johan Renck opta por uma direção que relega a ficção científica à condição de linguagem simbólica: o espaço, filmado com uma paleta opaca e sufocante, não é lugar de maravilhamento, mas extensão da mente confusa de seu protagonista. Até mesmo a nave, com seus ruídos persistentes e estrutura decadente, reforça a sensação de que nada está funcionando — nem dentro, nem fora de Jakub. O tempo é dilatado, as falas rarefeitas, e as memórias invadem a narrativa com a angulação oblíqua das lentes de Jakob Ihre, que reproduzem o olhar de Hanus e, por consequência, uma nova forma de ver.

Há, no centro dessa desconstrução emocional, uma escolha estética deliberadamente contraditória: a interseção entre o absurdo e o solene. Uma aranha falante debatendo culpa e abandono seria, em outro filme, um gesto de comicidade pueril. Aqui, funciona como catalisador psíquico, revelando camadas de vulnerabilidade que Sandler expressa com uma contenção dolorosa. A sobriedade com que ele sustenta esse colapso emocional — sem histrionismos, sem acessos de raiva, apenas com o peso inegociável de quem já desistiu de justificar seus atos — confere à sua atuação uma dignidade que desloca qualquer comparação com seus papéis anteriores. Não se trata de uma reinvenção do ator, mas da negação de qualquer expectativa em torno dele. Sandler simplesmente se apaga — e nesse apagamento, encontra um tipo de verdade incômoda que poucos intérpretes ousariam assumir.

O resultado é um filme que parece não querer agradar, e talvez seja esse seu maior mérito. “O Astronauta” recusa soluções fáceis: não há resolução, reconciliação nem absolvição. A Terra para a qual Jakub retorna, mesmo intacta, já não o comporta como antes — e o espectador é levado a questionar se, de fato, havia algo esperando por ele. A grande ausência de Lenka não é apenas física; é a prova de que o tempo afetivo não se interrompe por decreto. O filme propõe, com crueza, que a distância emocional pode ser mais devastadora do que qualquer desvio orbital. E se há alguma redenção possível, ela não virá por atos heróicos, mas pela escuta tardia daquilo que se tentou ignorar. No fundo, o espaço que mais aterroriza não é o entre planetas, mas o que separa duas consciências que já não se reconhecem. Hanus pode ter voltado às estrelas. Jakub, ao que tudo indica, não.

Filme: O Astronauta
Diretor: Johan Renck
Ano: 2024
Gênero: Aventura/Ficção Científica
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★