Nelson Rodrigues (1912-1980) era um gênio. E estava certo. Pouca gente soube materializar o torvelinho de traumas, complexos, paranoias e, por evidente, perversões sexuais que permeiam as relações humanas, todos esses assuntos em que Nelson esgrimia um moralismo sagaz acerca das transformações que se erguiam diante de seus olhos, nos costumes, na política e nas artes. Narrativas como a de “Babygirl” voltam com gosto ao Anjo Pornográfico, que fazia questão de esfregar na cara dos hipócritas seu desprezo pelo que as pessoas fazem na calada da noite, por debaixo dos panos, escondendo-se do julgamento de seus pares e do seu próprio.
Halina Reijn decerto nunca ouviu falar de Nelson, mas ousa aprofundar-se nos acordos muito íntimos entre uma executiva, madura e no topo da carreira, e seu novo estagiário, trinta anos mais novo e nada afeito a convenções sociais. Reijn cutuca chagas que se perpetuam no tempo sem, contudo, oferecer nenhuma resposta ou tecer nenhum julgamento, cumprindo seu papel de artista, afinal arte e transgressão sempre beberam da mesma fonte turva. Mas será que é isso mesmo que ela pretende?
Entre e um outro compromisso, Romy, a personagem de Nicole Kidman, corre para o banheiro para assistir a filmes de conteúdo duvidoso e estimular-se, até alcançar um êxtase solitário e envergonhado. Em casa, ela e o marido, Jacob, de Antonio Banderas, fazem amor em posições as mais exóticas — lembrando as cenas da mesma Kidman com Colin Farrell em “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), de Yorgos Lanthimos —, mas, como se vai assistir, nenhuma delas a excita tanto como suas aventuras pueris no ambiente de trabalho. Até que Samuel, o novo candidato uma vaga na empresa de Romy, aparecesse, ela parecia disposta a levar esse segredo para o túmulo, mas um não sei quê no novato, talvez sua certeza de que não deve observar qualquer noção de subserviência a possível futura chefe.
Ainda na abertura, Samuel salva Romy de uma cadela sem coleira e enfurecida, sem esboçar nenhum cansaço. A diretora-roteirista deita e rola nessas metáforas, tirando todo o proveito que consegue de Harris Dickinson, um talento em ascensão constante desde “Beach Rats” (2017), de Eliza Hittman, e consolidada com o estranhamente divertido “Triângulo da Tristeza” (2022), de Ruben Östlund. Reijn sabe que Dickinson é uma força da natureza, rara e potente demais para ser desperdiçada, e investe nele as fichas mais altas, inclusive quando a trilha sonora de Cristobal Tapia de Veer, acertadamente, encaixa sucessos a exemplo de “Never Tear Us Apart” (1988), do INXS, e “Father Figure” (1987), na voz maviosa de George Michael (1963-2016), nos delírios pós-coito de Samuel.
Ao fim de 114 minutos, “Babygirl” fica parecendo um pastiche de “Atração Fatal” (1987), o clássico do gênero dirigido por Adrian Lyne, com “A Substância” (2024), de Coralie Fargeat. Mas com Harris Dickinson — e, acredite, isso quer dizer muito.
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