Com Ben Affleck e Samuel L. Jackson, essa obra-prima chegou à Netflix e vai deixar você em choque até o último minuto Divulgação / Paramount Pictures

Com Ben Affleck e Samuel L. Jackson, essa obra-prima chegou à Netflix e vai deixar você em choque até o último minuto

Num mundo que cultiva a pressa como virtude e a eficiência como valor moral, a colisão entre dois homens numa manhã qualquer em Manhattan transcende o acaso. Não se trata de um evento isolado, mas do ponto de inflexão entre duas biografias marcadas por escolhas que, até ali, pareciam individuais, mas que se revelam sintomaticamente sociais. Em “Fora de Controle”, Roger Michell inverte a lógica do espetáculo: o que poderia ser apenas um duelo temperado por testosterona vira um experimento sobre os limites da razão, da culpa e da ambição quando comprimidos pelo tempo. Gavin Banek, advogado brilhante moldado pela cultura do lucro, e Doyle Gipson, pai em reconstrução, forjado na resistência cotidiana, cruzam caminhos por força do acaso — mas o que decorre desse encontro é tudo menos aleatório. A colisão entre seus carros é só a superfície visível de um embate mais profundo: o de dois projetos de vida tensionados até o colapso por estruturas que os excedem.

A sofisticação do roteiro não reside no jogo de revanche entre protagonistas, mas na maneira como a espiral de agressões revela o esgotamento de um modelo ético baseado na autopreservação. Banek, alicerçado num universo que recompensa a esperteza e relativiza o dano colateral, carrega a missão de legalizar uma expropriação disfarçada de filantropia. A pasta laranja que ele esquece no carro de Gipson — símbolo da negligência que costuma acompanhar os que “vencem” — passa a ser o pivô de uma batalha travada não por bens, mas por controle narrativo: quem tem o poder de definir o que é justo? Do outro lado, Gipson não quer vingança, mas dignidade. É a recusa em aceitar o cheque em branco que deflagra o conflito, pois ali está embutida a tentativa de transformar um erro moral em um mero cálculo financeiro. A recusa de Doyle é um gesto político, ainda que impulsivo. Ele não quer ser mais um “dano colateral” da pressa alheia — e por isso a pasta não é apenas um objeto perdido, mas um manifesto silencioso contra uma lógica que o silencia há décadas.

O que Michell realiza aqui não é a oposição entre bem e mal, mas uma autópsia da moral de ocasião. Cada passo dado por Gavin ou Doyle no intuito de reparar o estrago só amplia a cratera entre eles — não porque sejam más pessoas, mas porque carregam a convicção de que a justiça está sempre do próprio lado. Nesse sentido, o filme se aproxima mais da tragédia clássica do que de um thriller urbano: os personagens não são arquétipos, mas homens falíveis que, ao tentarem escapar das consequências, apenas aprofundam o abismo em que já estavam. A presença de figuras secundárias como o sogro de Gavin, uma esfinge corporativa que banaliza a ética em nome do “bem maior”, e o padrinho de AA de Doyle, que contrapõe a humildade da escuta à retórica da culpa, amplia o alcance temático da trama. Cada diálogo carrega a tensão de quem já se desculpou demais ou nunca teve que pedir desculpas a ninguém. E é nesse contraste que o filme extrai seu verdadeiro impacto: ao sugerir que o problema não é errar, mas a forma como se tenta justificar o erro.

A direção evita o melodrama fácil justamente ao explorar o cotidiano como arena de conflitos éticos. Não há trilha heroica, não há epifanias místicas. O que há é um encadeamento de microdecisões que, somadas, revelam o quanto a ética pode ser corrompida pela urgência. Ao dar tempo e voz às consequências, “Fora de Controle”revela a elasticidade da consciência moral em um mundo onde o tempo é capital e empatia, custo. Não é por acaso que o filme transcorre quase em tempo real: Michell quer que sintamos o desconforto de cada escolha não feita, de cada caminho não tomado. É a aceleração que impede a reflexão. E ao nos colocar diante de dois homens que poderiam facilmente ter sido apenas um — e que talvez só se diferenciem pelo CEP em que nasceram —, a narrativa implode a falsa neutralidade do destino. A colisão foi acidental; a guerra que se segue, não.

O que resta não é a resolução catártica de um conflito, mas o retrato cruel de uma sociedade que ensinou seus filhos a vencer, mas não a ceder. A pergunta que persiste não é quem venceu o duelo, mas por que ele precisou acontecer. Talvez a resposta esteja naquele breve instante em que ambos quase desistiram, quase recuaram — e, mesmo assim, avançaram. É ali que “Fora de Controle” atinge sua maioridade como narrativa: ao recusar o consolo fácil e apontar para o que cada espectador preferiria não ver. O filme não busca redimir seus personagens, mas desestabilizar o espectador. E o faz com precisão rara, obrigando-nos a encarar um paradoxo incômodo: quanto mais nos convencemos de estar certos, mais nos afastamos da possibilidade de reparação. Afinal, não há justiça possível quando cada lado acredita ser a única vítima.

Filme: Fora de Controle
Diretor: Rocher Michell
Ano: 2002
Gênero: Drama/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★