Nenhuma guerra termina no campo de batalha. Ela se prolonga no silêncio, infiltra-se nas veias dos que sobreviveram e os transforma em relicários de uma violência que insiste em não morrer. É com essa premissa brutal — e nada reconfortante — que “Caçado” inicia sua marcha, convertendo a figura do soldado Aaron Hallam em um estudo inquietante sobre aquilo que resta de um homem quando o treinamento o ensinou a matar, mas jamais a retornar. A abertura ambientada em Kosovo escancara uma barbárie que não oferece contexto ou redenção, apenas a imagem perturbadora de uma menina que resgata um brinquedo entre cadáveres. Nada ali serve para emocionar ou aliviar. É um mundo em que a guerra deixou de ser exceção, convertendo-se na única gramática possível para quem, como Hallam, foi moldado para eliminar e esquecer. Mas esquecer nunca foi parte do programa.
A decisão de Friedkin de deslocar o conflito para o coração das florestas norte-americanas carrega mais do que uma metáfora óbvia sobre a selvageria latente do Ocidente: é uma recusa em distinguir entre zonas de combate e espaços civis. Hallam assassina caçadores como se fossem soldados inimigos, atribuindo-lhes crimes morais que só fazem sentido dentro de seu delírio operado por códigos bélicos. Em vez de um vilão unidimensional, o filme insinua um espectro — não uma alma em disputa entre bem e mal, mas uma presença que transita entre os escombros da razão. Já Bonham, seu ex-instrutor, não representa redenção alguma. Ele é a outra face de uma estrutura que fabrica predadores em série e depois se espanta quando um deles escapa do controle. A relação entre os dois nunca é de afeto ou culpa explícita, mas sim um pacto silencioso entre criador e criatura, cada um arrastando o outro para um terreno onde já não há mais ética, apenas técnica.
É justamente essa renúncia ao sentimentalismo que impede “Caçado” de se afundar completamente nas armadilhas da mediocridade. Ainda que o roteiro oscile entre a introspecção tensa e o absurdo físico — especialmente nas fugas mirabolantes que desafiam até o mais elástico dos realismos —, o filme encontra em suas lacunas um tipo específico de potência. Ao evitar explicações para a violência de Hallam ou um passado redentor que justificasse seus atos, Friedkin alcança uma forma de honestidade rara no cinema de ação: a de não ter respostas. Quando as tentativas de humanização são apenas sugeridas e imediatamente abandonadas, o que resta é uma narrativa que resiste à moralização, tratando seus personagens não como arquétipos, mas como ruínas de uma lógica que os engoliu.
Nas sequências de luta, essa lógica se torna física, quase orgânica. O combate corpo a corpo entre Hallam e Bonham jamais recorre à estética coreografada que o gênero tanto celebra. São embates sujos, desesperados, onde cada golpe parece nascer menos do desejo de vencer e mais da incapacidade de interromper o ciclo. A cena em que ambos confeccionam facas improvisadas — por mais implausível que soe em um primeiro olhar — condensa essa ideia com precisão cruel: mesmo quando cercados de tecnologia e apoio institucional, os personagens estão condenados à brutalidade rudimentar, como se a civilização fosse apenas uma camada fina sobre instintos muito mais antigos. É nesse ponto que “Caçado” se alinha com as inquietações mais profundas de diretores como Michael Mann ou Walter Hill, que também exploraram o corpo masculino como território de conflito, não para celebrá-lo, mas para revelar sua falência simbólica.
Talvez o maior trunfo de Friedkin esteja na recusa em estabelecer hierarquias emocionais ou narrativas previsíveis. Não há catarse, não há redenção, tampouco um acerto de contas que devolva algum sentido à jornada. Em vez disso, o desfecho opta por uma contenção quase minimalista, como se o filme compreendesse que qualquer excesso emocional comprometeria o que foi sustentado com tanta crueza. O duelo final entre mestre e pupilo não resolve nada, apenas confirma a impossibilidade de resolução. E nessa decisão seca, cortante, reside a força mais subversiva do filme: não oferecer consolo algum, apenas o reconhecimento de que, às vezes, o dano é tão profundo que a única linguagem possível é a da lâmina que corta, da respiração entrecortada e do olhar que não pede, nem oferece, perdão.
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